
As grades partem-se. Os segredos voam. Não sei calar. 1983. Vomito a sombra dentro de mim. Delicada. Ácida. Mortal. Tatuado por dentro com o nome da morte. Eu sou a febre. Sou a peste que dança em silêncio no corpo. Sou a morte que espreita atrás dos olhos. Sou o vómito do corpo virado ao contrário. Infetado. Contaminado.
O sussurro de um arame farpado, rasga-nos a vida. Não quero sombras novas à fresta. O jornal enterra-nos vivos. Gripe? Pneumonia? Coincidência? Azar? Porque é que só morremos nós? Os homens que amam homens sós? São fantasmas. São túmulos. Esperam os nossos nomes. Histórias que sujam o amor. Abre os olhos. Não ouves a cidade a segredar? Não sentes o medo no olhar? Uma praga arco-íris? Sempre fomos doentes. Gritam as bocas da vida. Já não somos crime. Desde o ano passado. 1982. Mas ouvimos olhos ameaçadores.
Os corpos caem. Não em palavras. Em carne. Corpo, febre. Amigo, ossos de vidro. Ele, sangue na tosse. São olhos abertos depois dum suspiro. A culpa é dos corpos? Tocámo-nos demais? Amámo-nos demais? A morte vem do prazer ou do amor? Deus está cansado. O castigo de quem ama. Uma cruz sem madeira. Uma fogueira sem chama. Cancro homossexual. 1983.
Um exame. Um envelope. Uma pronúncia de dor. As mentiras são máscaras. A dor é compromisso. Um ano. Antes de ti meu amor. Antes da tua pele ser o meu corpo. Antes do mar. Antes do rio. Antes de tudo. Todos temos um passado. Enquanto os olhos acariciavam o teu sono. O veneno já dormia em mim. O sangue escrevia outra história. Silenciosa. Áspera. Letal. 1984.
Este cheiro. Cheira a fim. O vazio não tem cheiro. O vazio não tem voz. O vazio não sangra. Este cheiro. Eu? Limpar. O importante é limpar. Desinfetar. O importante é desinfetar. Cheira a culpa. Cheira a ontem. Limpar. O importante é limpar. Desinfetar. O importante é desinfetar. Até que o chão se renda. Até que a memória se cale. 1985.
Venham. O início da guerra. É invisível. O vírus. Quer pele. Quer pensamento. Eu sou exército. Estou à caça do vírus-mestre. Quando tombar. O cheiro morre. Mãos. Pés. O ar. Como é que se desinfeta o ar? Limpar. O importante é limpar. Desinfetar. O importante é desinfetar. A memória come micróbios. O amor come bactérias. Limpar. O importante é limpar. Desinfetar. Silêncio. Este não tem cor de mestre. Fala com o pano. Fala com o chão. Silêncio. HIV. O vírus ouve. Vejo reuniões clandestinas de vírus. Este cheiro. Partículas no ar. Guerra química. Sou a bomba. Hiroshima, meu amor. Sou bomba atómica. O tempo perdeu a casa. A sujidade vive dentro de mim. Este cheiro. Vem da boca do corpo. Estragado. Sou eu. Sou estragado. Sou sujo. Sou podre, como o fruto de mim mesmo. Sou quebrado, durmo nos meus cacos. 1986.
Quase bebia a loucura. Acordo em mim. Matemática. Três semanas. O tempo que o silêncio leva a fermentar no sangue. Seroconversão, dizem os médicos. O tremor sem inverno, digo eu. O único rosto. Nunca fui de muitos corpos. O corpo sempre seguro. Mas uma noite, a pele quis ser pele. Sem nenhum escudo entre as almas. Ligo-lhe. Exames e envelopes? Cada um sabe de si. Seco. Cru. A raiva escala como fogo nas margens do peito. A boca sabia. A boca calou. A boca traiu. Ele devia ter-me dito. O mundo inclina-se. 1987.
Hoje eu tenho um corpo. Hoje não sou o meu corpo. Fomos dois a girar naquela dança cega. Fui eu quem tirou as luvas. Reconheço as minhas mãos. A culpa não tem apenas uma morada. A sombra é partilhada. Foram dois corpos. Eu não estava sozinho. Cada um sabe de si. Não durmo no caixão. Não vejo a sombra nos ossos. Com morte no sangue. Sou ainda amor. Com cicatriz. Com nome. Com tudo. Sou ainda luz. Sou amor. Cada um sabe de si. Hoje estou vivo. Até na lama nascem flores. 2025

Esta carta vem dum sítio chamado amor. Não sei se existe em mapas, mas mora aqui dentro, no meu peito, no lugar onde o teu nome arde devagar. Escrevo-te de um lugar onde tudo em mim te reconhece, mesmo quando não te vejo. Onde cada palavra que digo, já tem a forma da tua boca. O amor existe. Dizes tu, com os olhos cheios da certeza, de quem veste a idade para sonhar.
Eu, desconfiado, perdido entre medos antigos e silêncios herdados, não respondo. Vou provar-te que existe. Dizes, com voz que fala e olhos que dançam. És muito bonito. Digo. Mas não é do teu rosto que falo. É o teu olhar. Tu não tens olhos. Tens peixes. Vejo peixes. Peixes que voam no meu mar. Sou um aquário por limpar. Fico quieto. Silêncio. Viajas da Terra do Nunca, até mim, meu menino perdido. Diz-me quem és. Deixa-me tocar-te nos olhos. E diz-me apenas quem és. Tocas. Fujo. Tocas. A tua fotografia. Dizes. Os teus ombros. O teu sorriso guardado numa moldura qualquer. Olhas. Desejas. Queres.
O medo parte-me os vidros da janela que dá para o Tejo. O medo de te magoar. O medo de amares uma ideia, um reflexo, uma possibilidade, um espelho, um sonho, um desejo. E fujo. Fujo de mim, de ti, da ideia. Porque amar é um risco perigoso. E eu sou um bicho hibernado na toca bem treinada. Perdi a chave. Está tudo trancado. Portas, janelas, memórias. Até as gavetas onde guardei os beijos que nunca dei. Tu, com um sorriso de quem sabe nadar em corações fechados, sussurras: Eu ensino-te a nadar. Mas eu só sei afundar. Tenho medo da água. Rebolei na onda e perdi o boné. Nos braços do meu pai, não me afoguei. Nunca aprendi a nadar.
Tenho medo do teu oceano. Tenho medo de me abrir e nunca mais voltar a ser inteiro. Tenho mãos, sorris-me tu. Tenho braços. Mas eu não tenho coragem. Fugir sempre foi mais fácil do que acreditar. Clichê? Amor. Um mês depois. Não desistes. Desistir não é um verbo a conjugar. Leio as palavras na tua boca como quem descobre um poema num idioma esquecido. A língua de homens que amam homens. Ainda se ama aos 50? Tenho idade para sorrir sozinho. Nesta língua de homens, somos peças de antiguidade. O pó já não se limpa. Tu tens idade para voar e derrapar nas nuvens. É teu filho? Podia ser. Não é. O teu corpo não tem idade e eu não sei contar. Dizes-me. 20 anos. Tens 20 anos. Que queres de mim? Quero-te a ti. Aprendes o meu dicionário. Meu bebé grande. Sorrio de vergonha ao te ouvir. E eu também sorrio contigo. Estou nervoso. Eu também. O peito. O tempo. A calma.
Quatro horas da tarde. Casa do Alentejo. Coração nos olhos. A camisa a tremer. Os meus olhos afogam-se nos teus. Vejo-te. Um sorriso onde espero nadar. Tão certo. Tão claro. Tão inevitável. Um beijo? As mãos? O corpo decide por nós. Um abraço. O calor. Nós. Não existem olhos. Não existe tempo. O mundo parou. Sem clichê. O mundo parou. O teu peito no meu peito. O meu coração no teu coração. Silêncio. Um abraço é a forma humana mais perfeita que existe. Acreditas no amor à primeira vista? Silêncio. De mão dada? A primeira vez. Não? Sim. Medo. Vergonha. Mas não largo a tua mão. Depois o rio. O rio e tu. Os meus dois amores. Um banco de jardim admira o rio. Um banco de rio, na verdade. Estamos no Campo das Cebolas. “Chegamos sempre onde nos esperam.” Segreda-nos Saramago, enquanto retira os óculos. Os teus lábios. Foges. Os narizes. Fujo. Os meus olhos. Silêncio.
Pinto-te neste momento que é só nosso. O teu peito é a minha toca. Não sei nadar. O primeiro beijo. Tremes. Os olhos fechados são água onde caminho descalço. O beijo é um contrato. Não dito. Não assinado. Mas eterno. É a promessa que o corpo faz à alma. Tu és o lugar. És o sim. És a chave do mar. Olhas para mim como quem pede licença para existir aqui. No meu corpo. No meu tempo. Deixa-me entrar. E agora? Onde estamos? Na minha cama. Descubro o teu peito. O meu rosto pintado no teu peito. Quero ser teu namorado. Vamos ser amigos especiais. Quero ser teu namorado. Dizes. O rio ainda corre. Ainda estamos de mão dada? Sim. Não me largues a mão. Não me largues a mão.
