ARTIGOS – ARQUIVO 2021

Discriminação em Viseu, um longo caminho a percorrer

Dezembro 2021

O presente estudo foi elaborado pela Associação Atitude Colectiva (LGBTI Viseu) com base num questionário realizado online entre Janeiro e Setembro de 2021. O inquérito tem decorrido anualmente desde 2019 e visa compreender a dimensão da problemática da discriminação em função da Orientação Sexual, Identidade de Género e Características Sexuais na população LGBTI+ em Viseu. Os resultados obtidos são sempre referentes ao ano anterior.

Os resultados deste inquérito referem-se a casos de discriminação decorridos no distrito de Viseu no ano de 2020, tendo respondido ao mesmo 108 pessoas. Os dados aqui apresentados foram disponibilizados pelas pessoas inquiridas para a elaboração deste estudo. Poderá encontrar este e outros estudos no separador Documentos deste site. Agradecemos a todas as pessoas que tornaram possível este estudo e que ousaram dar voz às suas experiências e vivências. Obrigada! 

Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres 

Sofia Moreira

25 Novembro 2021

Vista por muitas pessoas como sexo fraco, pessoa frágil, a mais vulnerável, a mais sentimental, cuidadora, sensível… estamos a falar da MULHER, sim. No entanto, a mulher poderá resumir-se a estas características? Serão características exclusivas e altamente descritivas de uma mulher? Importa, também, sublinhar que não se pretende falar aqui da mulher com uma visão heteronormativa, binária e vinculada aos papéis sociais de género.

Dia 25 de novembro, invariavelmente, desde 1999, celebra-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Houve necessidade, por parte da Organização das Nações Unidas (ONU), instituir este dia devido ao elevado volume de violência que se cometia sobre as mulheres. Contudo, volvidos 22 anos, esses crimes não apaziguaram e vemos até alguns indicadores agravarem-se – sendo que as razões deste aumento podem ser diversas.

Esta violência pode ser de índole física, psicológica, económica e sexual, perpetuada através de insultos, ameaças, humilhações, violações, murros, pontapés, coações, chantagens, privações monetárias, isolamento social, forçamento do outing, no caso de pessoas LGBTI+, etc. Pode acontecer nos mais diversos sítios, desde a casa em que cada uma destas vítimas habita, espaço privado, até ao seu trabalho, na rua, na escola, espaço público. Infelizmente, estas pessoas podem ser violentadas tanto por pessoas desconhecidas, como pelas pessoas mais próximas, como familiares diretos, e as razões podem ser múltiplas.

Sendo a mulher vista como pessoa inferior, numa visão sexista, começa logo com uma clara desvantagem e, a partir daí, vão-se acumulando características que a podem enrolar numa espiral de discriminação e violência. Como características propícias à discriminação, para além do género já intrínseco nesta exposição, temos a idade, o tom de pele, a nacionalidade, a orientação sexual, a identidade de género e expressão de género, por exemplo. Assim, se falarmos de uma mulher trans falamos numa dupla discriminação. E, mais especificamente, podemos falar de transmisoginia, isto é, este termo cunhado por Julia Serano, descreve a superioridade hierárquica que os homens sentem sobre as pessoas trans, especialmente, sobre as mulheres trans. Pois, se a mulher já está numa posição inferior hierarquicamente, alguém que está a transgredir as normas e os papéis de género implícitos socialmente, menos terá o seu aval e aí começa a discriminação.

Muitas vezes, a violência começa nos primeiros anos de vida ou enquanto crianças, como é constatado no caso da Mutilação Genital Feminina (MGF) e/ou com os casamentos forçados. A MGF consiste em lesões permanentes nos órgãos genitais femininos através de cortes parciais ou totais da genitália externa. Em Portugal, em 2020, foram apurados 101 casos desta natureza e, nesse mesmo ano, houve a primeira condenação no nosso país. Quanto aos casamentos infantis, apesar de serem criminalizados pela lei portuguesa ainda se consumam em grande número, no entanto é uma realidade à qual o governo está atento, pois foi criada ainda este ano uma comissão que pretende estudar este problema, a fim de trazer soluções mais eficientes para o colmatar. Vê-se este problema especialmente ligado às crianças conotadas com o sexo feminino, devido à violência sexual a que ficam expostas, à gravidez em idades precoces e aos problemas que podem daí advir, ao abandono escolar e à possibilidade de tráfico humano.

Quanto a este último ponto, os dados, até hoje, apontam para que as mulheres sejam as principais lesadas quanto ao tráfico de seres humanos, sendo o objetivo, maioritariamente, o crime de exploração sexual. Também as mulheres trans são bastante afetadas por esta problemática. Muitas vezes afastadas do mercado laboral, a viver na pobreza, são envolvidas em esquemas de tráfico sexual, muitas vezes com a esperança que isso seja a sua salvação, revelando-se o oposto.

No mercado laboral a discriminação também acontece em grande número, as mulheres ganham em média menos 14% do que os homens, sendo que esta desigualdade salarial aumenta e o tratamento da pessoa é alterado quando a entidade empregadora e colegas de trabalho ficam a par da orientação sexual ou identidade de género da pessoa.

Com o aparecimento da pandemia de covid-19 e as medidas decretadas pelos governos para a dirimir, as pessoas ficaram confinadas aos seus lares e a convivência com a pessoa que agride, no caso da violência doméstica, foi estreitada. Em 1999, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) mostra-nos que 6603 pessoas do sexo feminino pediram apoio nos gabinetes especializados, enquanto os dados de 2020 revelam que 9805 foram apoiadas pela mesma entidade. Por sua vez, dados preliminares do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA – UMAR), numa janela temporal de 1 de janeiro a 15 de novembro de 2021, revela que pelo menos 23 mulheres foram assassinadas, em Portugal, com 13 destes assassinatos a ocorrer em situações de intimidade. O isolamento com as pessoas agressoras também foi um problema diagnosticado no que concerne às pessoas LGBTI+, como concluído no mais recente inquérito sobre discriminação na população LGBTI+ de Viseu.

Enquanto as mulheres continuarem a ser violentadas e a serem vistas como inferiores não atingiremos uma plenitude em termos de Direitos Humanos. Ainda lutamos para que as mulheres consigam o seu lugar numa sociedade machista, em que possam usufruir de todos os seus direitos e viver sem medo de possíveis discriminações e ataques. É essencial que se veja a mulher para além de uma vagina e como mais do que um corpo sexuado à mercê de escrutínio e prazer alheio.

Direito de ser: A Despatologização das identidades Trans

Sofia Moreira

20 Novembro 2021

No passado dia 22 de outubro celebrou-se o Dia Internacional para a Despatologização das Identidades Trans. Este dia é celebrado desde 2009 e o seu objetivo principal era acabar com os rótulos de doença no que concerne às identidades trans que apareciam contempladas nos livros guia da doença mental – Diagnostic and Stastical Manual of Mental Disorders (DSM), por parte da American Psychological Association (APA) – e da doença – Classificação Internacional de Doenças (CID), por parte da Organização Mundial de Saúde (OMS). Desde 2009 muita coisa mudou, a nível nacional e internacional. Será que o objetivo foi cumprido? Será que ainda faz sentido assinalar este dia? Vem connosco descobrir.

Em 2013, aquando da última atualização do DSM, vimos a transexualidade deixar de ser considerada como doença mental, porém foi acrescentado o conceito de disforia de género. Disforia de género trata-se de um conflito interno que as pessoas podem sentir quando não apresentam uma congruência entre o sexo que lhes foi atribuído à nascença e o seu género. Anos mais tarde, em 2018, a OMS afirmou que a transexualidade não podia ser vista como doença e, em 2019, quando saiu o CID-11, a mais recente atualização deste guia médico, apenas a disforia de género aparecia como condição – como no DSM –, mas já dentro de uma nova categoria relacionada com a saúde sexual. 

Apesar deste conceito ainda se manter em ambos os manuais, vemos uma evolução no sentido em que se deixa de considerar a transexualidade como uma doença em si e o foco passa para a disforia de género, que importa sublinhar: não é um sentimento vinculativo a todas as pessoas trans. A inclusão deste conceito nestes guias, mesmo não sendo consensual, é justificada pelo facto de assim se poder aplicar os tratamentos necessários às pessoas trans, no que concerne, por exemplo, a tratamentos hormonais, cirurgias, apoio psicológico, etc. Contudo, esta justificação é facilmente refutável, pelo menos no que diz respeito à lei portuguesa, porque o acesso à saúde é um direito de todas as pessoas, como está inerente no artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa quando afirma este serviço ser geral e universal. 

Após esta atualização da OMS, foi determinado que até janeiro de 2022 os países tinham de criar leis e tinham de se ajustar a esta norma. Portugal, em 2018, através da lei nº 38/2018, “Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa”, teve o maior avanço legislativo nacional em relação à identidade de género, até hoje. Este diploma, no que respeita às identidades trans, refere-se à autodeterminação, ou seja, à liberdade de cada pessoa, a partir dos 16 anos, poder assumir a sua identidade sem precisar de comprovar que foi submetida a procedimentos médicos e/ou de índole psicológica, como demonstra o nº 2 do artigo 9.º. Porém, o que se pede, ainda, às pessoas entre os 16 e os 18 anos é um relatório que ateste a sua capacidade de decisão – passado por profissionais de medicina ou psicologia com inscrição nas respectivas Ordens –, visto ainda não terem atingido a maioridade, como descrito no nº 2 do Artigo 7.º. Apesar de este relatório, que apenas pretende aferir a sua capacidade de decisão, não poder ter referência à identidade de género, este ainda é um ponto pelo qual se luta, pois não faz sentido submeter a pessoa a este processo.

Desde que esta lei foi criada, até março do ano corrente, mais de 40 menores conseguiram mudar o seu nome e sexo no registo civil. Porém, por mais que as leis estejam criadas e até sejam vanguardistas, é necessário haver um acompanhamento para que estas sejam respeitadas e cumpridas, não basta estabelecê-las. É, igualmente, importante haver uma sensibilização da população geral, bem como uma adequada formação para as pessoas que trabalham no atendimento ao público e para os e as profissionais de educação e saúde.

O que se pretende com a despatologização é mais do que um descolamento entre o legal e o clínico, falamos da dignidade a que todas as pessoas têm direito: poderem ser quem são, sem discriminação, sem observação médica, em que apenas a palavra de cada um e uma baste para se autoafirmarem. Apesar deste grande passo por parte da OMS e da APA e o acompanhamento da lei portuguesa, ainda nos debatemos, na sociedade portuguesa e não só, com a vasta discriminação de pessoas trans e vemos muitos dos seus direitos serem-lhe negados, por isso, é seguro dizer que faz todo o sentido ainda se assinalar a data e se continuar a batalhar nestas questões.

A Associação

10 de Outubro 2021

Nós não somos um problema, somos seres humanos e exigimos igualdade de direitos, por isso é necessário continuar a lutar contra a propagação do discurso de ódio e o escalar de violência e discriminação que se tem verificado relativamente à população LGBTI+.

Os órgãos de soberania locais têm de criar parcerias com as associações da sociedade civil e fornecer respostas, pois enquanto não ouvirem e perceberem as necessidades da sua população, nunca serão governantes em pleno. São precisos planos municipais LGBTI+ em todos os distritos do país.

Ser LGBTI+ não é uma escolha, a população LGBTI+ não escolhe ser, é, existe e enfrenta dificuldades todos os dias. É necessário informar e educar para que orientação sexual e identidade de género deixem de ser conotadas como escolhas.

Ninguém escolhe sofrer agressões físicas e psicológicas. Ninguém escolhe ser alvo de discriminação devido à sua orientação sexual, identidade de género, características sexuais e expressão de género.

Não queremos tolerância, queremos igualdade. A população LGBTI+ continua a enfrentar desigualdades em questões de direitos. Continuam a existir limitações em inúmeros serviços, desde a saúde à educação, apesar dos avanços das leis portuguesas.

A situação pandémica que atravessamos veio atrasar ainda mais o avanço das respostas em diversas matérias e as questões LGBTI+ não fugiram à regra, sobretudo no que diz respeito às questões Trans, tendo sido canceladas consultas e cirurgias, existindo também uma quebra no acesso a tratamentos hormonais.

A escassez de respostas na área da saúde em matéria de questões Trans é uma situação incomportável, tornando os diversos tipos de tratamentos e cirurgias demasiado demorados, deixando a vida das pessoas em suspenso. Estas situações têm de ser resolvidas e têm de ser encontradas respostas de forma a possibilitar os tratamentos médicos de Norte a Sul do país e Ilhas inclusive.

Ser LGBTI+ não é uma escolha, exigimos respeito e igualdade de direitos.

Jorge e Roger  – Bears on Motorbykes

29 de Outubro 2021

‘’Com respeito, informação e educação acaba-se com muita discriminação!’’

Quem são Jorge Santos (JS) e Rogério Alves (RA) além de activistas?

JS/RA: O Jorge e o Rogério são um casal de pessoas do mesmo sexo/género, que se identificam com a filosofia e a cultura da comunidade Bear, residimos atualmente em Vila Nova de Gaia, mas consideramo-nos cidadãos do mundo.

JS – Sou natural de Vila Nova de Gaia, fiz carreira como militar, mas atualmente estou na inatividade. Para dizer a verdade, esta nunca foi a área em que me imaginei profissionalmente, sempre sonhei ser arquiteto e ainda hoje essa é uma das minhas grandes paixões. Não se concretizou, pois, a matemática sempre foi o meu calcanhar de Aquiles.

Sou descendente de uma família judaico portuguesa brasonada, ‘’daquelas que estouraram tudo e só lhes restou a presunção, o nome e o brasão’’ e cujas origens se perdem nas brumas do tempo. Aquelas famílias nortenhas tradicionalistas que já todos ouvimos falar com mais de quarenta tios e tias (de quem nem sequer sabemos os nomes) e cerca de quinhentos primos com todos os graus de parentesco possíveis e imaginários.

Agora falando um pouco mais a sério, para mim esta sempre foi a pergunta mais difícil de responder, em virtude de me encontrar sempre em constante mutação e o que hoje considero ser uma fiel descrição da minha personalidade pode já não corresponder à imagem que tenho de mim amanhã – ‘’procura-se mais do que o sol pela lua, espero que quando se encontrar não se volte a perder…’’ (autor anónimo).

Mas se hoje me descrevo como um eterno rabugento, insatisfeito e inconformado com as discriminações, injustiças, opressões e crimes que se cometem contra os seres humanos, as minorias, o meio ambiente e os animais, devo-o à ‘’velhice’’ e à criança irreverente, curiosa, questionadora e argumentativa, que sempre fui. Obviamente que estas características da minha personalidade não eram, e ainda hoje continuam a não ser, bem vistas ou aceites pela sociedade e pelos membros mais conservadores/castradores, que compõem a minha família mais alargada.

RA – Nascido em Angola antes da guerra colonial, comecei desde que tenho memória a colecionar fragmentos de vivências ímpares. Hoje, passadas várias décadas, sinto-me privilegiado de ser um universo cheio de experiências adquiridas um pouco por todo o mundo. Enquanto entidade singular, nunca permiti a ideia de barreiras impostas por ideologias limitadoras que se manifestassem através da opressão. Aceitei, desde muito novo, quem sou. Lidei com as minhas escolhas, e lido bem com os meus erros.

Esta busca constante, que cria pontes entre as histórias de vida que partilhei, tem sido espelhada na minha vertente criativa, que é onde me sinto mais eu. Na escrita, na expressão visual das artes, na fotografia, no âmbito profissional e pessoal, procuro sempre dar oportunidades a conteúdos por vezes perdidos nas entrelinhas.

O facto de ter que fazer escolhas, por vezes origina lutas internas. Tudo, todos, todas e todes são válidos.

Podem contar um pouco sobre o seu percurso enquanto activistas?

JS/RA:

JS – Sinceramente, não consigo precisar como começou o meu percurso como ‘’activista’’ propriamente dito, mas era por demais expectável que me tornasse num… se não fosse pelo simples facto de ter nascido gay, no seio de uma família tão conservadora, moralista e castradora, com toda a certeza que seria pela minha personalidade irreverente, argumentativa e questionadora, traços muito característicos da minha personalidade, que desde tenra idade se tornaram evidentes.

Existe um episódio da minha infância que retrata bem o tipo de criança que eu era: tendo nascido no seio de uma família portuguesa, fui batizado na igreja católica, e seria natural que fizesse todos os rituais a ela associados, 1ª comunhão, 2ª comunhão…crisma, como uma criança bem-comportada e obediente. Mas na realidade não foi nada disso que se passou, quando o padre da minha freguesia na missa de domingo afirmou que toda a humanidade descendia de Adão e Eva, os meus alarmes dispararam e assim que tive oportunidade questionei-o sobre essa afirmação. Como ele não foi capaz de me dar uma resposta plausível ou uma que eu considerasse aceitável, visto saber que Adão e Eva só tinham tido dois filhos Caim e Abel, abandonei a igreja e defendi de tal maneira a minha posição que não ouve ninguém capaz de me demover desta decisão. Nunca mais voltei a colocar os pés numa igreja a não ser em situações inevitáveis ou para admirar a sua arquitetura e fotografar os edifícios.

Os dados estavam lançados e, desse dia em diante, passei a questionar tudo o que para mim não fizesse sentido, que considerasse injusto ou incorreto. Quando cheguei à adolescência, as minhas lutas estavam mais centradas e relacionadas com questões ambientais e direitos dos animais, (talvez inspirado, quem sabe, pela música do Roberto Carlos ‘’As Baleias’’) cheguei a integrar e a estar filiado em diversas associações como a Quercus, Fapas e a Greenpeace.

Ao atingir a maioridade, as minhas lutas eram tão díspares que englobavam inúmeras questões, considerava-me um pacifista, ambientalista, feminista, antirracista. Fiz parte do grupo de fundadores do Movimento Anti Violência Português, e de inúmeros outros. O meu envolvimento no ativismo LGBTQIA+, começou, pelo que me recordo, em 1996 com a participação na manifestação organizada pelo “GTH-PSR – Grupo de Trabalho Homossexual do Partido Socialista Revolucionário”, que ocorreu em frente da sede da Porto Editora.

Devido a questões profissionais estive proibido e afastado do ativismo, durante muitos anos, mas, mesmo correndo o risco de ser preso ou de me instaurarem um processo disciplinar, marquei sempre presença nas Marchas do Orgulho LGBTQIA+ ou noutras atividades relacionadas. Durante toda a minha carreira como militar, sempre defendi a abolição da lei ‘’Don´t Ask, Don´t Tell’’, nas forças armadas, e fiz parte de grupos informais que trabalhavam nesse sentido. Obviamente que isto me trouxe muitos dissabores e complicações, chegando a ser transferido de unidade por diversas vezes.

Felizmente, para mim, essas restrições e proibições terminaram e, nos últimos anos tenho o orgulho de poder estar presente e participar nas Marchas do Orgulho e noutras atividades como ativista LGBTQIA+ e como um dos representantes dos Bears on Motorbykes.

RA – Ter chegado ao ativismo tão tarde na minha vida, é consequência de uma conjuntura de vários fatores. Cresci na África do Sul, e lidei com o regime opressor do apartheid, tendo perfeita noção do que significava ser diferente. Enfrentei a adolescência e tornei-me homem, sem nunca conhecer as cores que hoje representam tanto, tantos, tantas e tantes.

Consciente de que ainda há tanto por fazer pelos direitos LGBTQIA+, partilho da imensa gratidão por todas, todos e todes que abriram caminho e que gritaram quando eu não gritei. Estar no ativismo, é antes de mais uma homenagem às conquistas dos que antes marcharam. É nesse reconhecimento que encontro motivação para dar continuidade à luta pelos direitos à igualdade.

O que são os Bears on Motorbikes e como começou?

JS/RA: Os Bears on Motorbykes, são uma comunidade de motociclistas LGBTQIA+ portugueses, independente, sem fins lucrativos, quotas, ou qualquer filiação a patrocinadores ou marcas.

Somos uma comunidade aberta e inclusiva, onde todas as sexualidades, identidades de género, nacionalidades, etnias e religiões são bem-vindas.

O nosso intuito é poder reunir e proporcionar a todos/as os/as motociclistas LGBTQIA+ e restantes membros, eventos e convívios relacionados com a temática LGBTQIA+, para além das atividades nacionais e internacionais de motociclismo e moto-turismo de participação gratuita.

A nossa área de intervenção engloba todo o território de Portugal Continental e Ilhas. Para além dos eventos realizados a nível nacional anualmente realizamos vários eventos internacionais, fora e dentro da Comunidade Europeia, alguns dos quais com a colaboração de outras comunidades LGBTQIA+.

Os Bears on Motorbykes, foram fundados por um pequeno grupo de motociclistas LGBTQIA+ que, cansados de ocultar a sua sexualidade (a fim de evitar comentários, piadas e comportamentos homofóbicos e machistas por parte de outros membros dos moto-clubes, associações e instituições onde eram filiados/as) tomaram a decisão de criar uma comunidade de motociclistas onde se pudessem expressar livremente.

Os Bears on Motorbykes, tornaram-se pioneiros na comunidade motociclista, quando, a 12 de Março de 2016, fundam a primeira comunidade motociclista portuguesa, direcionada primordialmente para lésbicas, gays, bissexuais, pessoas trans e intersexo assim como para os/as seus/suas companheiros/as e amigos/as.

Com a criação da comunidade, colmataram-se as lacunas existentes, tanto na comunidade LGBTQIA+, como na comunidade motociclista portuguesa e, deste modo, facultar e disponibilizar a todos/as os/as motociclistas LGBTQIA+ uma alternativa aos homofóbicos, transfóbicos, machistas e separatistas moto-clubes, associações e instituições motards existentes no nosso país até então.

Em 08 de Junho de 2018, após várias reuniões e debates sobre inclusão, decidimos abrir as inscrições a todos/as os/as motociclistas que se identifiquem com a nossa filosofia, independentemente da sua sexualidade. 

De que forma é que o projecto tem impacto na população LGBTI+?

JS/RA: Acreditamos que, ao assumirmos a nossa sexualidade e identidades de género publicamente, ao tornarmo-nos visíveis, estamos a trabalhar para que haja uma mudança de mentalidades, tanto na comunidade LGBTQIA+ como na sociedade portuguesa. Esta foi uma das formas que encontramos para quebrar alguns dos tabus e preconceitos socialmente predominantes e, desta maneira, direta ou indiretamente, acabamos por servir de referência e exemplo para muitos jovens LGBTQIA+, que gostam de motas, ou que pretendam praticar outra modalidade desportiva, conotada como estritamente masculina ou feminina.

No que diz respeito à comunidade motociclista, a mentalidade tem vindo lentamente a mudar, mas reconhecemos que o trabalho não tem sido fácil. Existe a falsa ideia de que o motociclismo é coisa de ‘’homens’’, e as pessoas LGBTQIA+ não gostam ou não percebem nada disso. Infelizmente os preconceitos não se refletem apenas nas pessoas da comunidade LGBTQIA+, mas também nas mulheres. Basta que uma mulher, afirme publicamente que gosta de motas, ou apareça em qualquer local a conduzir uma, para ser automaticamente apelidada e conotada como lésbica, independentemente da sua orientação sexual.

E, esse preconceito é ainda mais evidente, quando vemos e falamos com motociclistas que sabemos serem LGBTQIA+, mas que se recusam terminantemente a fazer a inscrição e filiação em qualquer clube ou comunidade motociclista conotada como LGBTQIA+, preferindo ocultar a sua sexualidade e identidade de género e sujeitando-se a constantes humilhações, estando permanentemente a ouvir piadas e comentários LGBTQIA+fóbicos por parte dos/das outros/as filiados/as.

Em que outros projectos participam de momento?

JS/RA: A nossa comunidade está sempre disponível ‘’dentro das nossas capacidades’’ para participar, colaborar e trabalhar em qualquer evento da comunidade LGBTQIA+. O que já aconteceu por diversas vezes. No que diz respeito ao ativismo LGBTQIA+, estamos a elaborar/delinear um projeto que gostaríamos de apresentar aos diversos coletivos, associações e núcleos LGBTQIA+. mas depois podemos abordar esse assunto de forma mais pormenorizada.

Os Bears on Motorbykes tem dois projetos/eventos que não estão diretamente relacionados com o ativismo LGBTQIA+, mas pelos quais nutrem um especial carinho, o Apoio aos Peregrinos de Fátima e o Portugal Teddy Bear Run.

O Apoio aos Peregrinos de Fátima, é um evento de cariz humanitário. Este evento decorre durante todos os dias da peregrinação de Maio, e consiste na prestação de cuidados de saúde, distribuição gratuita de água/alimentos ou outros apoios que nos sejam solicitados. Especialmente direcionado para o apoio a pessoas oriundas das classes mais baixas e desfavorecidas da sociedade, no entanto, e seguindo o espírito de interajuda típico da comunidade motociclista, nunca negamos apoio a quem quer que seja que nos procure, independentemente da sua classe social ou poder económico. Sendo uma iniciativa de cariz humanitário cada um/uma dos/das participantes colabora com o que pode.

O Portugal Teddy Bear Run, é um evento de cariz solidário. Consiste na angariação de ursos de peluche (Teddy Bears), de bens de primeira necessidade e outros. Posteriormente, os bens angariados são transportados e doados pelo/as participantes a associações e instituições de apoio à criança (todos os anos é selecionada uma associação/instituição diferente).

O Portugal Teddy Bear Run conta já com quatro edições, infelizmente a quinta edição que iria decorrer em janeiro de 2021, teve que ser cancelada devido a situação pandémica que vivemos atualmente.

O Teddy Bears Run é um evento internacional de cariz solidário, realizado em diversos países do mundo. Segundo o que conseguimos apurar, o primeiro Teddy Bear Run realizou-se nos Estados Unidos da América, há cerca de quatro décadas. Tudo começou com o internamento da filha de um casal de motociclistas numa unidade de oncologia pediátrica, após lhe ter sido diagnosticada uma leucemia. Com o passar dos dias e conforme iam decorrendo os tratamentos, o casal foi-se apercebendo que muitas das crianças que lá se encontravam internadas, utilizavam os seus peluches para desabafar e recorriam frequentemente a eles em busca de algum conforto. Perante essa constatação, o casal decidiu organizar uma angariação de Teddy Bear’s junto dos membros do moto-clube onde eram associados, para depois serem doados à unidade hospitalar. A angariação teve tanta adesão por parte da comunidade que, os motards fizeram questão de levar os Teddy Bear’s a enfeitar as motas, e foi assim que nasceu esta tradição. Todos os anos, no dia de Reis, os Bears on Motorbykes enfeitam as suas motas com os Teddy Bear’s angariados e vão entregá-los à associação ou instituição esse ano escolhida, juntamente com os restantes donativos.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. De que forma esta afectou a vossa vida enquanto pessoas e activistas? E como acham que terá afectado a população LGBTI+

JS/RA: A pandemia afetou-nos imenso. Ainda se sabia e falava muito pouco sobre o SARS-CoV-2 em Portugal e já nós estávamos fechados em casa de quarentena. Acho que fomos dos primeiros portugueses a ficar em teletrabalho.

A pandemia alterou basicamente tudo, a dinâmica do casal, o método de trabalho, os horários, as rotinas, houve perda de rendimentos e uma série de eventos/projetos que tiveram que ser cancelados ou adiados. Inicialmente foi complicado, mas lentamente fomo-nos adaptando e ajustando a esta nova realidade e circunstâncias.

No que diz respeito ao ativismo LGBTQIA+, foi um ano difícil e bastante complicado. As Marchas do Orgulho e os eventos que faziam parte do calendário LGBTQIA+ ou foram cancelados ou passaram a ser realizados nas plataformas online. O confinamento veio acentuar ainda mais a invisibilidade e fragilidade da comunidade LGBTQIA+, empurrando-nos para dentro de quatro paredes. Este foi um dos principais motivos que levou e incentivou os Bears on Motorbykes a organizarem uma serie de 30 eventos de rua, apelidados de ‘’Celebração do Orgulho LGBTQIA+ 2020’’. Muitos destes eventos contaram com a colaboração e participação de diversos coletivos, associações e núcleos LGBTI, como foi o caso do de Viseu, em que contamos com a colaboração e participação do LGBTI Viseu. Foi um mês desgastante, mas uma experiência muito satisfatória, foram 30 dias de estrada, 21 cidades e 28 locais onde marcamos a nossa presença e levamos as nossas cores. Para além desta iniciativa, participamos e estivemos presentes em diversos eventos realizados por outros coletivos, como foi o caso do 3º Piquenique Inclusivo, organizado pelo Porto Inclusive. Com o apertar das medidas decretadas pela DGS, realizamos uma série de publicações nas nossas redes sociais para assinalar e celebrar o mês do Orgulho e o mês da História LGBTQIA+.

Relativamente a eventos de motociclismo e moto-turismo, ainda conseguimos realizar alguns dos eventos que tínhamos agendados, mas, cerca de 70% destes eventos tiveram que ser cancelados devido às restrições de circulação e ao fecho das fronteiras.

Temos perfeita consciência de que esta nova realidade mundial, que todos estamos a vivenciar, não tem sido um período fácil de ultrapassar para nenhum de nós. Mas se houve coisa que esta pandemia veio salientar e trazer à tona, foi o fosso social e as desigualdades que existem na nossa sociedade. Se estes tempos têm sido complicados para todas as pessoas, para a comunidade LGBTQIA+ e para outras minorias tem sido devastador.

Em situações de crise as primeiras vítimas são sempre as pessoas já mais vulneráveis e fragilizadas. Infelizmente as coisas não se ficaram por aí. Com o decretar do confinamento e o encerramento dos espaços públicos, as desigualdades e fragilidades tornaram-se ainda mais evidentes. Houve um aumento considerável de relatos de violência doméstica, de casos depressivos e de LGBTQIA+ fobia em ambiente familiar. As pessoas Trans*, já de si muito fragilizadas, encontraram dificuldades acrescidas no acesso à medicação e viram as suas consultas e cirurgias serem adiadas indefinidamente. As pessoas LGBTQIA+ que perderam parte dos seus rendimentos, ou mesmo os seus empregos, ficaram sem meios de subsistência que lhes permitisse serem autónomos/as, tendo ficado na dependência de ajudas externas para suprir até as necessidades mais básicas. Muitas destas pessoas ficaram desalojadas (sem abrigo) ou tiveram que regressar para ambientes familiares, muitos deles extremamente LGBTQIA+ fóbicos. O encerramento dos bares e de outros locais LGBTQIA+, vieram acentuar ainda mais o isolamento e a solidão.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que acham que ainda falta fazer?

JS/RA: Felizmente em Portugal já conseguimos ver muitos dos nossos direitos reconhecidos. Contudo, muito mais existe ainda para conquistar, muito caminho para percorrer e muito trabalho para fazer!

Temos que perceber que, não é pelo facto de vermos hoje muitos dos nossos direitos reconhecidos, que vamos cruzar os braços e deixar de lutar, ou de nos manifestarmos publicamente. O que hoje acreditamos ter como seguro pode já não o ser amanhã. Os direitos podem ser revogados, para isso basta que as políticas no nosso país mudem, infelizmente nos dias que correm temos vários exemplos desses pelo mundo fora.

Mas vamos por etapas, quando nos perguntam porque marchamos, e respondemos que o fazemos para vermos os nossos direitos reconhecidos (daí o mote para as palavras de ordem ‘’NEM MENOS, NEM MAIS, DIREITOS IGUAIS’’) recebemos como resposta, ‘’Mas vocês já têm tudo! O que pretendem mais? Vocês já podem casar! Vocês até já podem adotar!’’. Este tipo de afirmação só pode vir de uma pessoa ignorante, mal informada ou preconceituosa.

Vejamos o caso das pessoas idosas LGBTQIA+ (sim, das pessoas idosas, porque as pessoas LGBTQIA+ também envelhecem, não chegam aos 60 anos e morrem ou desaparecem como que por magia). As pessoas LGBTQIA+ têm uma esperança de vida igual à de qualquer outra pessoa. Por mais que a sociedade possa pensar que são extraterrestres ou uns bichos estranhos, não são. São pessoas iguais a todas as outras! Nascem, crescem, amadurecem e envelhecem, como qualquer outra pessoa! Assim, têm as mesmas dificuldades e necessidades decorrentes do avançar da idade. No entanto, será que têm os mesmos direitos e apoios que as pessoas idosas cisgénero e heterossexuais? A resposta é NÂO!

Muitas destas pessoas são obrigadas a ocultar as suas vivências, a sua sexualidade e a sua identidade de género, para que possam corresponder aos padrões e requisitos exigidos por determinadas instituições. Só deste modo conseguem ter acesso a cuidados paliativos e continuados, lares ou, simplesmente, receberem o apoio domiciliário de que tanto necessitam!

Muitas destas pessoas veem-se obrigadas a voltar para dentro do armário, depois de uma vida inteira de lutas. Os casais do mesmo sexo são separados e privados de demonstrações de afetos e da sua vida sexual, por discriminação e estigma social que continua a querer fazer acreditar que as pessoas idosas não têm sexo. Esta situação é inaceitável e de uma violência psicológica alarmante.

As pessoas idosas LGBTQIA+ que neste momento necessitam deste tipo de cuidados, apoios e instituições, são pessoas que cresceram numa época em que ser LGBTQIA+ em Portugal ainda era crime e motivo de discriminação educacional, laboral, habitacional e familiar. Todas estas discriminações tiveram consequências diretas, obrigando estas pessoas a sujeitarem-se a trabalhos precários e mal remunerados para conseguirem sobreviver. A precariedade prolongou-se no tempo, impedindo-as de conseguir planear a parte final da vida e resultando em reformas miseráveis, tornando-as ainda mais dependentes das rígidas estruturas de apoio social. No caso das pessoas Trans*, esta situação torna-se ainda mais dramática. Devido à discriminação e à falta de oportunidades de emprego, não lhes restou outra possibilidade que não fosse o trabalho sexual, sem qualquer vínculo laboral ou possibilidade de fazer descontos para assegurar uma reforma para quando chegasse a velhice. 

Se hoje em dia se pode sair à rua e marchar orgulhosamente para revindicar o que falta conseguir, é às pessoas idosas LGBTQIA+ que o devemos. Foram essas pessoas que “deram a cara e o corpo às balas”. Essas pessoas merecem ser respeitadas, tratadas condignamente e homenageadas.

As pessoas idosas LGBTQIA+ não podem esperar mais vinte ou trinta anos para verem os seus direitos reconhecidos. É necessária uma mudança urgente nas formas de atuação das instituições. É necessária a implementação de políticas de inclusão da diversidade.

É necessário formar equipas multidisciplinares para trabalho em rede, vocacionadas para atender pessoas LGBTQIA+. É necessário criar lares e unidades de cuidados continuados e paliativos para cuidar destas pessoas com respeito e dignidade, sem LGBTQIA+ fobia ou discriminação!

É imprescindível formar equipas multifuncionais de apoio domiciliário, vocacionadas para atender pessoas LGBTQIA+, em todos os pontos do país e não apenas nos grandes centros.

 É necessário facultar e dar formação a todos/as os/as funcionários/as públicos/as de modo a evitar discriminações. É fundamental providenciar e disponibilizar apoio jurídico e social direcionado as pessoas LGBTQIA+, para aconselhar e ajudar na resolução de problemas muitas vezes recorrentes.

As pessoas idosas LGBTQIA+ são válidas! Elas são a história viva das lutas e batalhas travadas pela comunidade LGBTQIA+. Cabe-nos agora a nós, lutar pelos seus direitos, minimizar a solidão e o isolamento em que se encontram, validar as suas vivências e histórias de vida e combater a discriminação a que estão sujeitas mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+.

Os direitos das pessoas idosas LGBTQIA+, também são direitos humanos!

Que projectos têm para o futuro?

JS/RA: Como já mencionei anteriormente os Bears on Motorbykes encontram-se, neste momento, a reformular e a ultimar um projeto que irá ser relançado em Janeiro de 2022.

O projeto chama-se ‘’Café da Manhã – Doze meses, Doze cafés’’ e pretende ser um espaço para promoção de encontros informais entre ativistas e população anónima LGBTQIA+. O ‘’Café da Manhã’’ será realizado uma vez por mês, de preferência aos sábados ou domingos de manhã, sempre com diferentes localizações, de modo a abranger a maior área possível do território português.

Pretendemos fomentar o debate de ideias, o esclarecimento de dúvidas e disponibilizar informação sobre a temática LGBTQIA+, para além de incentivarmos à descentralização, à aproximação, união e interajuda entre todas as pessoas envolvidas.

Pretendemos que este seja um projeto conjunto, organizado pelos Bears on Motorbykes com a colaboração e participação dos diversos coletivos, associações e núcleos LGBTQIA+. Juntos somos mais fortes!

A Sexualidade através da história

Iara Lugatte

01 de Setembro 2021

A proposta é apresentar uma reflexão histórica sobre o percurso da sexualidade desde a época em que a prática do sexo, ou falar sobre sexo não tinha restrições, até a ascensão da burguesia, que passa a ocupar um lugar de poder, juntamente com a Igreja e o Estado na tentativa de controle do sexo, até então, experienciado sem constrangimento pela gente da época.

O tema é extenso, e muito há para se dizer a respeito, mas pensei que um breve apanhado histórico ajudaria a situar a questão até os dias atuais.

Segundo os escritos sobre o sexo do início do século XVI, este, passa a fazer parte do discurso e da linguagem, sem restrição, e aos poucos foi sendo reconhecido como um mecanismo de incitação crescente na época. O poder e suas técnicas não possuíam nenhuma rigor, e a vontade de saber (Foucault) não se intimidava diante de algum tabu.

Já no início do século XVII, ainda era possível observar e vivenciar a franqueza e a liberdade das práticas sexuais, e não se guardava segredo sobre isso, tudo era falado sem disfarces ou reticências. Inclusive, não havia vergonha em expor as anatomias dos corpos nus. Mas tudo muda a partir da metade do século, pois com a ascensão da burguesia, essa maneira de viver o sexo e o prazer passa a ser vista de forma diferente, e acaba por ser encerrada e confiscada para dentro de casa para ser vivida sob outra perspectiva: o sexo para a procriação.

Acabam assim os tempos da expressão livre da sexualidade, e começa a repressão sexual, coincidindo com a chegada e desenvolvimento do capitalismo, e o sexo passa a ser rigorosamente reprimido. A repressão era tão violenta que não se podia mais falar sobre sexo, levando as pessoas ao mutismo com a imposição do silêncio, e assim nasce a censura e o pudor moderno. Essa época foi chamada de a Idade da Repressão.

Logo, entra em cena o poder da Igreja que se impõe ao proibir que falassem sobre o sexo de forma “imprudente”, pois toda intimidade sexual, tudo sobre o sexo, só poderia ser falado em confissão como forma de controle, para estabelecer o poder. A liberdade de linguagem desaparece, fica confinada, até entre professores e alunos, pais e filhos.

No início do século XVIII, não se mencionava nenhuma palavra sobre sexo, pois esta passou a ser um problema público, não privado e íntimo. Tudo era controlado, até a literatura ocupava-se a difundir todo o tipo de preconceitos, pareceres, advertências médicas, casos clínicos, esquemas para a reforma das leis e planos institucionais idealizados pela burguesia, etc., tudo isso eclode para reprimir o colegial (jovem estudante) e o seu sexo.

No início do século XIX, os primeiros psiquiatras começaram a falar sobre o sexo, mas como o tema era considerado risível, sem valor, baixo, etc., esses profissionais pediam desculpas por prenderem a atenção dos leitores com tais assuntos.

Portanto, podemos concluir que a repressão ao sexo foi impregnada durante o domínio da burguesia e sua hipocrisia vigente. Dito isso, também podemos afirmar que a relação entre o sexo e o poder chama-se repressão, que, de alguma forma, contextualizada, claro, ainda observamos esses resquícios de moralismo e hipocrisia em algumas sociedades onde reina o patriarcado.

Mas é também no final do século XIX que surge a Psicanálise com Sigmund Freud, falando sobre a sexualidade, o que vem estabelecer uma radical mudança no discurso sobre o sexo que não limita-se ao registo biológico, somente.

É no início do século XX que ocorre uma nova revolução no pensamento, o reconhecimento da sexualidade das crianças e os conceitos sobre sexo tomam novos rumos. Freud apresenta algo novo que descortina o tabu que afirmava não terem as crianças sexualidade, o que este contrapõe e liberta essa ideia com o caso clínico “Pequeno Hans” na sua obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, colocando o sexo num momento decisivo de volta ao discurso até os dias atuais. Assim sendo, é a partir da psicanálise que o sexo volta às discussões, agora como sexualidade.

Ainda que algumas vertentes da nossa sociedade tentem negar a importância primordial de se discutir a sexualidade entre crianças, adolescentes, pais e escola, ela está em nós, pulsante, incitante, excitante, desejante…em todas, todos e todes.

                                               “Tudo nesse mundo é sobre sexo, excepto o sexo.

                                               Sexo é sobre poder”. Oscar Wilde

Nota de Repúdio

24 de Julho 2021

A Associação LGBTI Viseu vem por este meio repudiar o acto de discriminação que decorreu esta quarta feira na cidade de Viseu. Vários são os meios de comunicação que descrevem o acontecimento como tendo sido um crime de ódio praticado por pessoas ligadas ao partido CHEGA em Viseu.

A situação de violência e discriminação decorreu junto às instalações da sede do respectivo partido, tendo sido agredido um funcionário de um estabelecimento que existe no mesmo edifício.

A discriminação não pode ser tolerada. Este tipo de situações reforçam o estigma direcionado às pessoas LGBTI+ e reflectem a situação vivida por muitas pessoas LGBTI+ nesta cidade, assim como um pouco por todo o país.

Este ano foram já vários os relatos de situações de agressões, discriminações verbais e queixas infundadas por motivos de ódio para com a população LGBTI+.

Consideramos que todas as pessoas têm o direito a ser, existir e a manifestar-se na sua essência livremente. Actos de violência que atentem contra os direitos humanos não podem ser justificáveis e devem ser denunciados. 

As leis não são imutáveis e a sua aplicabilidade está longe de ser ideal, tornando assim essencial e cada vez mais urgente a luta pela protecção dos direitos conquistados e a exigência do que ainda é necessário, para que todas as pessoas sejam iguais perante a lei.

A invisibilidade das pessoas LGBTI+ na cidade de Viseu tem de cessar, sendo necessário que o poder local implemente políticas públicas para a igualdade e não discriminação.

Sobre o Erotismo

Iara Lugatte

15 de Julho 2021

Muitos são os testemunhos quanto ao fenómeno do erotismo das pessoas com vagina, e alguma concordância quanto ao orgasmo que as pessoas têm, uma vez que isso pode acontecer de variadas formas, não só de uma forma objetiva, mas subjetivamente.

Algumas pessoas são categóricas quando afirmam conhecer, objetivamente, o orgasmo das pessoas com vagina, mas apenas as próprias podem dar esse testemunho, pois nada é tão objetivo assim no erotismo.

Quando falamos de erotismo, falamos de pulsões que estão diretamente relacionadas com a vida de um organismo.

Segundo Françoise Dolto, psicanalista francesa:

             “o desejo – seja qual for a sua provocação ocasional aparente, por uma causa exógena sensorial – uma vez significado aos sentidos da mulher, focaliza-se em sua região genital”.

Esta região ao ser tocada, ela experiencia uma sensação de erectilidade clitoridiana e de turgescência orbicular vaginal, acompanhada de calor e secreção, levando-a ao prazer e intensidade crescentes até o ápice, o orgasmo. Após esse momento, a sensibilidade e excitação decrescem com uma certa rapidez, até a detumescência da zona erógena. Esse abrandamento da tensão se dá pela necessidade local fisiológica de repouso, o que nem sempre é do conhecimento d@ parceir@ que quer manter a excitação da pessoa através de manobras artificiais e externas. É sabido que a a pessoa com vagina, após o orgasmo, experimenta um relaxamento físico geral, portanto, o conhecimento do funcionamento do erotismo pel@s parceir@s é prioritário para o entendimento sexual.

Mais uma vez a psicanalista Françoise Dolto, nos esclarece sobre os diversos tipos de orgasmo das pessoas com vagina, ela nos diz que é possível distingui-los:

            “orgasmo clitoridiano; orgasmo clitoridiano-vulvar; orgasmo vaginal e orgasmo útero-anexial. Este último, erradamente confundido com os anteriores, sobretudo com o orgasmo vulvovaginal, porque não é sentido conscientemente pela mulher e, assim sendo, nunca é por ela mencionado”.

Para a psicanalista francesa, o orgasmo útero-anexial deve ser diferenciado dos outros, não somente por razões descritivas objetivas, mas por razões libidinais, as quais são referidas pela teoria psicanalítica *.

Os tipos ou níveis de orgasmos são sentidos de forma isolada ou encadeados, convocando condições para que o outro orgasmo aconteça, entretanto, o processo de evolução libidinal pode ser recalcado, negado ou interrompido, sendo substituído por um sintoma qualquer para impedir o prazer.

Quanto a duração do orgasmo, esta é variável, tanto quanto a qualidade e intensidade do mesmo. Portanto, o orgasmo da pessoa com vagina para ser satisfatório, depende não somente da mesma, mas da pessoa ou pessoas com quem tem intimidade.

Importante salientar que, apesar dos variados tipos de orgasmo, o mais conhecido e experimentado pelas pessoas com vagina é o orgasmo clitoridiano, segundo os relatos de muitas pessoas que passaram pelo meu consultório. E, não podemos esquecer que o clítoris possui uma única função quando estimulado, o prazer, nada mais.

Para além disso, podemos afirmar que os corpos são erotizados pelo toque e pelo olhar da outra pessoa, não somente pela estimulação genital, mas também pela fantasia e desejo d@ parceir@.

* A teoria psicanalítica deve levar em conta a fruição dos órgãos, que faz parte integrante do inconsciente..

Vagina Museum

Ilustração de Charlotte Willcox que integrou a exposição inaugural 

Pedro Carreira

20 de Junho 2021

“Por todos os desafios que tivemos no último ano, este Mês do Pride é duplamente orgulhoso!”

Quem é Pedro Carreira além de activista pelos direitos LGBTI+?

Pedro: Tendo formação em engenharia, a verdade é que sempre tive paralelamente interesse no desenvolvimento comunitário, quer através do desporto (fui atleta federado durante muitos anos e responsável por vários grupos), quer através do desenvolvimento de projetos de comunicação, alguns inéditos dentro da sua área.

Aos poucos acabei por afastar-me daquele que parecia ser o meu caminho inicial na engenharia e focar-me então em projetos que tiraram partido e uniram na perfeição a ideia de comunidade e desenvolvimento de campanhas de teor social.

Pode contar um pouco sobre o seu percurso enquanto activista? 

Pedro: O meu percurso como ativista pelos Direitos Humanos, pelo menos de uma forma mais pró-ativa, surgiu há 7 anos. Quando comecei a escrever – também numa forma de auto-descoberta – sobre a temática LGBTI e a tentar – também para mim, friso – desconstruir muitos dos preconceitos que a população LGBTI ainda sofre na sociedade portuguesa. Aproveitei o que aprendi através de passados projetos de comunicação para lançar na altura um blogue – chamado Escrever Gay – e a criar uma plataforma em várias redes sociais de forma, aos poucos, a alcançar um maior público.

Passado um ano fui convidado pelo Nuno Pinto para integrar uma lista candidata à Direção da ILGA Portugal. A lista foi a escolhida e a partir daí que integro a Direção da Associação, hoje com nova Direção presidida pela Ana Aresta.

Todo este percurso ao longo dos anos permitiu-me crescer e reconhecer-me como pessoa LGBTI que, espero, também se reflete no trabalho que tenho (co-)organizado em termos de apoio político, social, cultural e comunitário à população LGBTI em Portugal.

Além de todo o ‘trabalho no terreno’ dos últimos anos – e que passa também por vitórias políticas como a autodeterminação de género, pela Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa ou as já várias edições do Arraial Lisboa Pride – um dos maiores Orgulhos que tenho são as pessoas que estas experiências me deram a conhecer. Seria hoje uma pessoa totalmente diferente sem elas, certamente muito mais condicionada na minha visão do mundo e com muitos menos sorrisos para partilhar.

O que é o Esqrever e como começou? 

Pedro: O esQrever (ou ainda “a” esQrever) é um projeto comunitário centrado num site de divulgação de notícias, cultura e opinião de temática LGBTI e Feminista. É uma plataforma em que são igualmente feitas denúncias de teor LGBTIfóbico. Surgiu inicialmente como o blogue pessoal que referi, mas ao longo do tempo começou a receber contribuições de várias pessoas que trouxeram ao projeto o seu cunho, as suas vivências, a sua voz.

Ao longo dos últimos 7 anos temos conseguido ganhar a confiança de um público interessado pelas nossas notícias – que raramente chegam aos órgãos de comunicação social generalistas – sugestões culturais ou chamando a atenção para denúncias de discriminação ou ódio contra a população LGBTI.

Acha que os media têm um papel relevante na população Queer em Portugal? 

Pedro: Os órgãos de comunicação social são um espelho da sociedade e no campo LGBTI não são exceção. Ainda há muita sensibilização por fazer, muita formação por ser dada a profissionais de comunicação e jornalismo. Basta recordar que ainda recentemente houve uma exploração algo sensacionalista e o uso indevido de pronomes e do ‘nome morto’ do Elliot Page, por exemplo, em muitos jornais portugueses. Estes sites, jornais e programas de televisão são muitas vezes a primeira fonte que as pessoas têm sobre estes temas e por isso ganham especial importância e responsabilidade na forma como tratam os mesmos.

Há que respeitar as identidades das pessoas LGBTI, há que combater preconceitos, estigmas e discursos de ódio, há que educar e normalizar as variadas orientações sexuais e identidades de género para que o grande público entenda e tenha presente o quão variada é a população portuguesa.

Em que outros projectos participa de momento? Quer falar um pouco sobre cada um deles? 

Pedro: Como projeto-paralelo, criei, desde 2019, o Podcast Dar Voz A esQrever, um programa semanal conduzido por mim e pelo Nuno Gonçalves em que debatemos, com tanta seriedade como humor, os temas de semana da área LGBTI e Feminista. Temos igualmente várias entrevistas, as últimas, por exemplo, foram à Eurodeputada Terry Reintke (conduzida pelo Diogo Pereira) e à Gisela João (conduzida por mim e pelo André Malhado); e episódios especiais com pessoas convidadas como Cairo Braga, Daniela Bento, Ana Vicente ou Mónica Canário, entre muitas outras.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. De que forma esta afectou a sua vida enquanto pessoa e activista?

Pedro: Foi realmente um tremendo desafio. O meu namorado estava emigrado e acabei por ficar largas semanas sozinho, apenas com a companhia do nosso cão, o Sawyer. Telefonemas e videochamadas não substituíam obviamente a socialização habitual com as pessoas. Como disse, foi um tremendo desafio, especialmente no que toca à saúde mental e ao meu equilíbrio. Lutamos durante anos pela nossa confiança perante outras pessoas, passamos por processos de aceitação, de afirmação, de Orgulho e, de repente, vemo-nos sós e invisíveis. Também por isso o Mês do Orgulho LGBTI de 2020 foi tão desolador.

Não me apercebi na altura o alcance de tamanho vazio, mas depois percebi a sua real importância na minha vida. Não podermos partilhar momentos como a Marcha do Orgulho LGBTI ou o Arraial Lisboa Pride, não termos esses momentos de comunhão, celebração e luta deixa-nos um vazio, deixa-nos momentaneamente sem rumo. Mas esse foi o preço a pagar pelo foco que tivemos no apoio das pessoas LGBTI que mais precisavam num contexto de pandemia. A ILGA Portugal conseguiu manter e reforçar até vários dos seus apoios no terreno e conseguiu dar resposta aos inúmeros pedidos de ajuda que recebeu. Foi tremendamente difícil e desafiante, mas esta realidade colocou-nos à prova, individual e coletivamente, e conseguimos redobrar esforços para lhe fazer frente. Isso é, à posteriori, também motivo de tremendo Orgulho.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que acha que ainda falta fazer?

Pedro: Depois do anunciado fim da discriminação na dádiva de sangue este ano, temos hoje várias propostas pela criminalização das chamadas “terapias de conversão”. Estas são atividades, muitas vezes silenciosas, dentro do núcleo familiar e com forte conotação religiosa, que violentam pessoas, nomeadamente jovens, contra a sua orientação sexual ou identidade de género. Mas lanço já o spoiler alert: estas pessoas não podem ser ‘convertidas’ e esta atividade é um verdadeiro atentado contra a dignidade humana que importa criminalizar.

A nível da União Europeia, pretendemos, por exemplo, que haja um reconhecimento mútuo de documentos para que famílias arco-íris sejam reconhecidas em todos os países da UE e possam circular livremente e em segurança nos mesmos, tal como as restantes famílias.

Que projectos tem para o futuro?

Pedro: Desenvolver os projetos existentes e dar resposta aos desafios que por vezes os mesmos nos lançam. Neste momento, e para ser mais específico, o foco é mesmo celebrar e ajudar na criação de um Mês do Orgulho LGBTI colorido, reivindicativo e celebratório. Ainda condicionado pela realidade pandémica, mas um pouco mais desconfinado, um pouco mais na rua. Este é um mês, por todos os desafios do último ano, duplamente orgulhoso!

Afonso Aroso Louro

29 de Maio 2021

“Carpe Diem, Tempus Fugit”

Conhecemos Afonso Aroso no Arraial LGBTI Matosinhos Pride em 2019 e ao longo do tempo temos vindo a acompanhar o seu trabalho. Hoje vamos ficar a saber um pouco mais sobre quem é a pessoa e que novidades nos traz.

Quem é Afonso Aroso além de activista pelos direitos LGBTI+?

Afonso: Sou Terapeuta Ocupacional no Hospital de Bragança no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental. Nas horas vagas desenho Banda Desenhada, retratos, e faço algumas coisas de carpintaria, pirogração de madeiras e jardinagem. À parte considero-me feminista e defensor dos direitos de várias minorias. Tento deixar um mundo melhor para as gerações futuras. Adoro passear nas arribas do Douro e nadar no rio com as minhas filhotas de 4 patas, um bom jogo de rugby, uma cerveja fresquinha num dia quente, ou um belo chocolate quente à lareira num dia frio.

Podes contar um pouco o teu percurso enquanto activista? 

Aroso: O meu percurso no ativismo não sei dizer quando ou onde começou. Sempre argumentei e debati contra as coisas que não considerava corretas, que achasse discriminatórias ou que prejudicassem de alguma forma alguém ou alguma minoria. Isso devo-o sobretudo à minha mãe e à minha família que sempre me mostraram e incentivaram a lutar pelos valores em que acreditava e fazer cada dia melhor. Acredito que todas as pessoas devem ser iguais em direitos e deveres. Não entendo porque há pessoas que por terem determinadas características físicas, consequência aleatória da genética, têm mais direitos que outras. Para mim isso não faz sentido.

A partir da adolescência comecei a unir-me a movimentos estudantis, grupos LGBT e desportivos, todos eles com uma grande base feminista.

Em 2017 uni-me a um grupo LGBT de Bragança, participei na organização da 1ª Marcha LGBT de Bragança, no ano seguinte na 2ª marcha… Depois juntamente com uma amiga fundamos o Arco-íris em Bragança através do qual temos dinamizado algumas atividades.

Queres falar do teu projecto “Crónicas de um trans?

Aroso: O meu projeto de BD “Crónicas de um Trans” surgiu por um acaso do destino. Eu comecei a perceber que era uma pessoa trans desde muito criança, no entanto, só aos 27-28 anos é que me permiti aceitar isso. Eu sempre gostei de desenhar, mas mantinha isso quase em segredo, tanto que nem as pessoas próximas sabiam que desenhava. Uma tarde fui ao centro de Bragança fazer umas compras e um rapaz aproxima-se para me perguntar as horas, mas ficou muito atrapalhado porque não sabia como me tratar “Senhor? Senhora? Menina? Menino?” e acabou por correr em direção oposta à minha muito confuso com a minha aparência. Esta situação, igual a tantíssimas outras no meu passado, por algum motivo tocou-me. Cheguei a casa e desenhei à pressa uma página em banda desenhada no meu bloco. Mais tarde estava a comentar com um amigo trans a situação e mostrei-lhe o desenho, ele gostou tanto que disse que eu deveria publicar o desenho, que de certeza haveria mais pessoas a identificar-se com o que eu tinha passado. “Eu? Publicar um desenho meu!?” não queria acreditar, eu não tinha assim tanta qualidade para publicar um desenho meu. Mas aquilo ficou-me na ideia, e na tarde seguinte desenhei outra BD. Estavam criados os dois primeiros capítulos das Crónicas. O título surgiu-me por acaso também, achei piada e assim ficou. A partir daí fui sempre desenhando, conforme a disponibilidade de tempo e de inspiração.

A BD das Crónicas é sobretudo autobiográfica, conto peripécias que me vão acontecendo, coisas que vou fazendo, conto um pouco de como está a ser o meu processo de transição enquanto pessoa trans masculina não binária, alguns dissabores e coisas menos agradáveis que vão acontecendo, mas em geral tento contar as histórias com humor, que para desagradável já chega muitas vezes a vida. Tem também alguns capítulos mais agrestes e reivindicativos, que pretendem chamar a atenção de quem lê para algumas situações que me parecem importantes, ou para algumas ambivalências deste mundo. A BD tem também muitos elementos externos à minha vida, situações que acontecem com pessoas próximas, outras com pessoas que não conheço de lado nenhum, mas que são, geralmente pelos piores motivos, casos mediáticos, ou algumas datas importantes que acho relevante colocar nas Crónicas.

Já tive alguns feedbacks de pessoas que me escreveram a agradecer eu fazer a BD, que as ajudei a (re)descobrir-se como pessoas trans. Outras que me escreveram a dizer que as Crónicas as ajudaram a perceber melhor o que é ser uma pessoa trans, as dificuldades que passamos, as pequenas (enormes) alegrias que vamos tendo com as nossas conquistas, como mais um pelito na barba, ou alguém nos tratar pelo nome e pronomes corretos. Coisas que habitualmente passariam despercebidas, mas que para nós são enormes conquistas. Outras pessoas simplesmente me escrevem a dizer que se riem imenso com as Crónicas, o que também me deixa muito feliz. Gosto de saber que há pessoas que conseguem descomprimir uns minutos das suas vidas lendo a minha BD.

Alguns dados curiosos das Crónicas:

– Tirando 2 ou 3 personagens que me pediram para manter o nome verídico, o resto todas têm nomes fictícios, incluindo as minhas cachorras.

– Decidi ficar com o nome Afonso Miguel pela BD das Crónicas. Inicialmente tinha pensado outro nome para mim.

– Será um projeto a ser publicado quando chegar aos 100 capítulos

Em que outros projectos participas de momento? Queres falar um pouco sobre cada um deles?

Aroso: Neste momento estou a participar em vários projetos.

– O Arco-íris em Bragança, é um grupo LGBTIQ que co-fundei com uma amiga. Fazemos atividades no âmbito das questões LGBTIQ, convívios (neste momento só online, pela pandemia), formações…. E como dizia Zeca Afonso numa das suas canções, “é bem-vindo quem vier por bem”, não importa se é LGBT ou não, desde que tenha interesse, respeito e queira ajudar a comunidade.

– O Diversidades Contigo, é um projeto da Cruz Vermelha de Bragança que visa dar apoio a pessoas LGBT, em especial às pessoas trans do distrito de Bragança. É um projeto com o qual o movimento Arco-íris colabora também. Neste projeto damos apoio nas idas às consultas, a tratamentos, fornecemos roupa e cosméticos de acordo com a identidade de género de cada pessoa. Damos apoio na área da Sexologia, Psicologia e outras que a pessoa nos possa solicitar ou que nós vejamos que sejam pertinentes. Fazemos convívios (neste momento só online devido à pandemia). Também damos informação, formação, o que nos for solicitado.

– Super i’s, da Associação Plano i, é uma BD para jovens dos 10-13 anos sobre vários temas como LGBTIQ, Saúde Mental na população jovem, Diversidade Funcional, Refugiados, Etnicidades, Pessoas racializadas ou de como ter Empatia. São uma série de Super Heroínas, todas raparigas ou pessoas não binárias que resolvem situações complicadas a vários níveis no seu dia-a-dia. Cada uma tem um superpoder diferente. Aconselho que as vão conhecer no instagram das Super i’s, são todas incríveis! No instagram também encontrarão mais informação sobre o projeto, os integrantes.

– As Histórias do Bubú, é uma recolha das histórias que nos contava o meu avô materno em criança. Algumas verdadeiras relíquias de família que eram passadas de forma oral de geração em geração. Recentemente uma das minhas tias escreveu essas histórias e eu estou a fazer as bandas desenhadas de cada uma delas. Está a ser uma verdadeira odisseia porque são mesmo muitas! Mas é muito gratificante quando depois vejo outras crianças a ler as histórias e a levarem consigo no imaginário as personagens que tantos sonhos me alimentaram também.

– Exposição Histórias Trans, que brevemente irá para o Porto e depois para o Algarve. É uma exposição com desenhos meus sobre pessoas trans em vários momentos das suas vidas. Estão também expostos os desenhos das Crónicas de um Trans, e desenhos inéditos das Crónicas, rascunhos dos capítulos.

– Rural Move, um projeto para dinamizar o interior de Portugal, em concreto eu estou na parte do nordeste trasmontano, que é onde resido. Pretende-se criar uma rede de apoios para pessoas que queiram vir trabalhar para zonas mais interiores de Portugal, sobretudo pessoas estrangeiras que trabalhem remotamente.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. De que forma te afectou até agora enquanto pessoa e activista?

Aroso: A pandemia veio sem dúvida dar-nos um abanão nas nossas vidas e nas nossas atividades.

Enquanto pessoa não alterou muito a minha vida. Como sou um profissional de saúde continuei sempre a trabalhar, estando mesmo na chamada “linha da frente” durante muito tempo. Foi duro, mas juntos vamos vencer.

Enquanto ativista, desde o Arco-íris e do Diversidades Contigo gostávamos de poder continuar a realizar encontros, convívios, marchas, formações, idas às escolas… mas neste momento é impossível. Só podemos continuar a desenvolver essas atividades de forma virtual de forma a garantir a segurança de todas as pessoas, e é isso que temos feito. Este tipo de atividades e de apoios não podem parar. Existem muitas pessoas a necessitar destas vias de escape, nem que seja assim, apenas de forma virtual, para poderem continuar a ser felizes e a viver as suas vidas.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que achas que ainda falta fazer?

Aroso: Ainda há muito para fazer no meu ponto de vista.

Acho que a nível dos direitos reprodutivos e da parentalidade ainda há muito a ser feito, sobretudo para o caso das pessoas trans. Muito poucos profissionais se preocupam com estas questões (felizmente aos poucos isto está a mudar). Acho que nestas questões as pessoas trans estão num grande “vazio legal”. Não se fala, não se comenta, e espera-se que não aconteçam algumas coisas, como por exemplo uma pessoa trans com útero engravidar. Isto para muitos profissionais ainda é impensável, e a nível legal é “impossível”, não há nada previsto neste sentido. No entanto não é por ter um nome “masculino”, o que quer que seja que isso quer dizer, que a pessoa não possa ou queira engravidar, por exemplo.

Também a nível de assistência médica em geral, acho que há muito a trabalhar ainda. Uma pessoa trans perde o acesso a exames e a consultas que lhe são essenciais, por exemplo uma pessoa trans com útero perde o acesso a consultas de Ginecologia a partir do momento em que muda o seu nome e sexo no cartão de cidadão; ou exames à próstata se for o caso. Não é por mudar o nome que os órgãos desaparecem ou não têm problemas.

Outra das coisas que considero importantíssimo investir é na educação. Durante todos os meus ciclos de ensino e nas várias aulas de educação sexual, ou nas consultas do médico de família, nunca ninguém me explicou como me poderia proteger para fazer sexo oral, ou como me poderia proteger para ter sexo com uma pessoa com vagina, por exemplo. Se me quis proteger tive de procurar eu essa informação. Parece que todas as pessoas são cis e heterossexuais e que têm como único interesse o coito vaginal, pelo que com o preservativo e a pílula, basta para se proteger contra as ITS’s e/ou prevenir uma gravidez não planeada, porque nada mais interessa. Ninguém ensina que podemos disfrutar dos nossos corpos livremente, ninguém ensina o que é a masturbação, e muito menos que é uma prática saudável. Muitas vezes até perpetuam mitos arcaicos, como por exemplo de que a masturbação é algo prejudicial.

Penso que outra das grandes batalhas que ainda tempos pela frente na luta dos direitos LGBTIQ é o binarismo de género imposto como única possibilidade. Nem todas as pessoas são mulheres ou homens. Em alguns países já se reconhece legalmente o não binarismo de género como um terceiro género. Gostava que um dia em Portugal também pudéssemos ter esta possibilidade. Há coisas que não entendo, como por exemplo, a obrigatoriedade de especificar o sexo em documentos legais. Que importância terá o tipo de genitais tem cada um? À parte de que por exemplo, não faz sentido que só por escolher um nome supostamente do género oposto ao que lhe foi atribuído à nascença mude automaticamente o sexo, os genitais não mudam por se mudar o nome. Portanto, qual a lógica?

Que projectos tens para o futuro?

Aroso: Projetos é o que não falta, o que me falta é tempo para me dedicar a todos e fazer tudo o que quero fazer! Acho que só com as 7 vidas de um gato! Hehe.

De momento gostava de chegar aos 100 capítulos das Crónicas, imprimir o livro e disponibilizá-lo a um preço acessível, e se possível gratuito para pessoas LGBT e em particular pessoas trans em associações e grupos como os que eu estou.

Tenho já mais banda desenhada em mente. Mas não posso dar muitos detalhes para já. Só que será sobre questões de saúde e população LGBT e escrita em Linguagem Fácil. A linguagem fácil é um tipo de linguagem escrita para pessoas com deficiência intelectual, pessoas com baixa literacia, ou pessoas cuja primeira língua não seja o português. Será escrita com pessoas integrantes do Diversidades Contigo.

Gostava também de poder ver projetos e leis que apoiassem mais a nossa comunidade nos aspetos que já mencionei antes.

Gostava de ver nos livros escolares mais diversidade de corpos, pessoas de diferentes cores e capacidades físicas, mentais e emocionais, que se educasse para a empatia e o respeito pelos outros, pelos que são diferentes.

MP & Bárbara

30 de Abril 2021

“A ÚNICA COISA CAPAZ DE NOS TRANSFORMAR É O AMOR”

Quem são MP e a Bárbara além de activistas pelos direitos LGBTI+?

MP: Ser Ativista faz parte de quem sou. Acho que isso é uma das minhas maiores essências. Mas a MP fora do Ativismo é uma pessoa apaixonada pela vida. Que adora o cheiro de café pela manhã, gosta de ler um bom livro e sente gratidão por cada minuto. Sou Terapeuta Holística e vivo em busca pelo conhecimento interior.

Bárbara: Sonhadora, ambiciosa e lutadora. Numa jornada de auto-conhecimento e transformação, para todos os dias, me tornar na melhor versão de mim.

Podem contar um pouco o vosso percurso enquanto activistas?

Quando começamos a namorar passamos por obstáculos muito difíceis. Incluindo a não aceitação da parte dos pais da Bárbara, o facto de o pai a querer internar e de ambos nos quererem separar, juntamente com as experiências de abandono parental e bullying que a MP experienciou, foi o suficiente para dar início ao que fazemos hoje.

Querem falar da vossa experiência enquanto Youtubers? 

Quando começamos a gravar vídeos em 2014 nunca o fizemos a pensar que teria este impacto. Começamos a gravar simplesmente para partilhar os nossos momentos enquanto um casal que tinha um relacionamento à distância. O feedback do público foi muito positivo e, saber que, muita gente utilizou os nossos vídeos nas escolas e que lhes demos esperança e coragem para serem felizes, deixa-nos de coração cheio.
O que mais nos motiva é saber que somos aquela esperança para muitas pessoas que não têm Amor em casa. Então nós estamos aqui para dizer que é possível, independentemente se os vossos pais vos aceitam ou não. Porque, embora com muitos obstáculos, nós somos a prova de que nada impede de sermos felizes quando existe Amor de verdade dentro de nós.

Podem nos falar do projecto #NÃOMECALAS? 

O projeto #NÃOMECALAS surgiu com o objetivo de passar para o público a realidade que existe em Portugal quando falamos de LGBTFobia e o quanto isso pode prejudicar o psicológico e a vida de alguém que é rejeitado pela família ou sociedade.
Mais tarde pegamos nesse projeto e transformamos em algo maior. Decidimos que seria apenas um projeto da MP porque é algo que ela sempre quis fazer a vida toda. O coração dela, a essência dela está inteiramente neste projeto.

#NÃOMECALAS existe para dar apoio às pessoas LGBTQIA+, principalmente aos jovens, que não têm um porto de abrigo em casa. Para aqueles que não conseguem ter voz ou força suficiente para se levantar sozinhos. Foi criado um centro de apoio online através do Instagram, que é a plataforma que os jovens usam mais, para conseguirmos dar conselhos, orientação ou até passar informação.

Um dos objetivos é que sejamos uma associação para conseguirmos ir mais além naquilo que fazemos. Mas acima de tudo, o conceito de #NÃOMECALAS é sobretudo Ser Amor.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. Quais as consequências que verificaram no vosso trabalho enquanto activistas?

O facto de não podermos sair à rua limitou alguns projetos que tínhamos em mente. Mas conseguimos dar a volta porque pegamos no projeto #NÃOMECALAS e demos asas a ele de outra forma. A verdade é que, as pessoas se refugiaram mais nas redes sociais e nós acabamos por apostar ainda mais nisso. Trabalhamos a partir das redes sociais. Foi através da pandemia que a MP, com o nome do projeto, criou o tiktok onde conta com mais 42 mil seguidores. Acreditamos que existe solução para tudo. Não ficamos de braços cruzados, precisamos de nos mexer, criar algo.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que acham que ainda falta fazer?

Neste momento, o que podemos começar a fazer para que as coisas tomem outro rumo mais positivo é começar por nós mesmos. Sentimos que as pessoas LGBTQIA+ não estão unidas o suficiente. A transformação começa de dentro para fora. Temos falado com imensas pessoas e todas sentem o mesmo. Então está na hora de começar a fazer alguma coisa quanto a isso.

Precisamos de união, consciência e Amor. Não podemos tomar os nossos direitos como garantidos. Grupos extremistas estão a ganhar impulso no nosso país e é urgente essa união entre nós para conseguirmos combater o ódio.

Que projectos têm para o futuro?

Queremos apostar tudo no projeto #NÃOMECALAS. A responsabilidade é das duas, mas a cara é da MP.

Bárbara: Eu preferi afastar-me mais das cameras e estar nos bastidores. Acho que fui feita para apoiar e criar fora das luzes. E acho que faz sentido que isto seja representado por ela (MP).

MP: Sinto que tenho uma responsabilidade enorme nas minhas costas, mas eu assumi isso. Eu prometi que daria o meu corpo às balas contra o preconceito. Isto está em mim. Não seria eu se não fizesse o que estou a fazer. Eu sei que a minha missão é fazer do mundo um lugar melhor. Em breve virão coisas novas dentro do projeto #NÃOMECALAS.

Sexualidade infantil e suas manifestações

Iara Lugatte

18 de Abril 2021

Sigmund Freud foi o primeiro teórico a falar sobre sexualidade infantil, tema um tanto polêmico  para a compreensão de alguns adultos, mesmo nos dias atuais. Na verdade, a psicanálise aborda a sexualidade como parte de um longo processo de estruturação psíquica, sendo esta teoria a mais importante referência nesta área.

Tudo começou no início do século 20 com Sigmund Freud ao apresentar o seu trabalho de investigação acerca da sexualidade na XX Conferência de Viena, onde ele afirma, para espanto da comunidade científica da época, que a criança tem sexualidade.

Garante-nos o senso comum que a infância é uma angelical fase do desenvolvimento humano, afirmação esta que acaba por sustentar alguns equívocos, um deles é que as crianças são seres amorfos e assexuados. Entretanto, a sexualidade infantil é naturalmente manifestada de variadas formas, tais como as  brincadeiras e a descoberta dos genitais, e nos questionamentos e curiosidades que não raro constrangem os pais. Esse constrangimento se dá porque os pais nem sempre conseguem discernir as diferenças entre sexualidade infantil e sexualidade do adulto. Diante de uma curiosidade da criança quanto à sexualidade, por vezes, os pais – atravessados pelas suas próprias repressões internas – sentem-se impelidos a censurar as suas crianças, preferindo as respostas cheias de fantasias e inverdades, rapidamente percebidas por estas. Entretanto, é através do modo como os adultos falam sobre a sexualidade com a criança que ela constrói suas crenças a respeito da mesma, percebendo-a como prazerosa ou indecente.

Quando a criança começa a explorar as partes do seu corpo, gradualmente ela experimenta sensações que vão desde a descoberta das suas mãos aos genitais às sensações de prazer que sentirá e tentará repetir. O corpo será sempre fonte de interesse para a criança, assim como, outras coisas que constituem o seu mundo.

Entender que a criança não se excita sexualmente como o adulto, é primordial.  A sexualidade da criança é, exclusivamente, sensorial, é assim que ela sente prazer. Ao tocar nos seus genitais, ela descobre uma sensação agradável provocada pelo estímulo físico, diferente da sexualidade do adulto que é constituída de fantasias eróticas.

Ainda assim, é importante que os pais conversem com as suas crianças sobre o assunto para esclarecer que, apesar de ser prazeroso tocar os seus genitais, isto só deverá acontecer em contexto privado, já que o seu corpo é propriedade de cada um de nós, somente. Transmitir noções de privacidade e proteção são de grande importância nessa fase. Também é interessante observar que as crianças brincam livres dos conceitos engessados sobre distinção de gênero ou de conotação erótica. Elas experimentam os papéis de mamãe e papai, exploram os corpos de bonecas/os para averiguar as diferenças físicas entre os diversos géneros e sexos; são curiosas, querem ver e/ou tocar a genitália das outras crianças de forma a conhecerem-se melhor, e não há nada de mal nisso. Cabe a quem tem a responsabilidade de educar explicar a anatomia diferenciada para cada sexo e o respeito ao corpo de cada pessoa. É um desafio? Talvez, pois a sexualidade infantil sempre foi um tema delicado para quem tem a responsabilidade parental e/ou educacional, logo, aceitemos o desafio e aprendamos com isso.

Certamente que algumas crenças (morais, religiosas, culturais, etc) mitificam a sexualidade, tratando-a como algo fora do humano, impedindo que a mesma deixe de ter um aspecto natural e próprio do ser humano, mas a sexualidade é real, e não deve ser pensada e nem vivida como mito. É imperativo que as crianças confiem no seu sistema familiar para abrir o diálogo sobre o que sentem, confiando nas palavras de quem as educa. E, através do conhecimento, e ausência de preconceitos, que esse conhecimento poderá oferecer à criança uma educação sexual compatível com a sua idade, sem moralismos. Sendo assim, quando o assunto é a sexualidade infantil, não podemos esquecer que as conversas devem ocorrer naturalmente como qualquer outras que temos com as crianças, basta nos despirmos dos sentidos eróticos que imprimimos a muitas situações, escutarmos e falarmos abertamente  sobre suas descobertas e sentimentos, sem dificuldade. Pois, entre inibir as manifestações sexuais das crianças e estimular aquilo que não pertence às etapas de seu desenvolvimento psico-sexual, existe uma grande diferença. Discernimento e orientação com afeto se fazem necessários, permitindo a manifestação das suas descobertas e dos sentimentos envolvidos nestes momentos de intimidade da criança com ela mesma. 

Finalmente, os julgamentos e preconceitos devem ser deixados de lado para que a sexualidade não seja vivenciada pela criança com culpa e medo. Falemos às crianças sobre inclusão, direitos humanos e amor. É importante falar para a criança sobre orientação sexual, a entidade de género e características sexuais, sem preconceito e sem medo, somente desta forma poderemos falar de respeito pelas diferenças.

Eduarda Santos

Ana Ferreira

02 de Abril 2021

Quem é Eduarda Santos além de activista pelos direitos LGBTI+?

ES: A Eduarda Santos é uma pessoa normal, como qualquer outra, com virtudes e defeitos, alegrias e tristezas, algumas doenças que vieram com a idade, aspirações, enfim, uma pessoa como qualquer outra. Adoro ler, ficção científica e romances históricos principalmente, gosto de jogos de estratégia, de cinema, música, de cosmologia e já fiz modelismo e toquei baixo. Gosto de ver notícias e tento sempre estar actualizada relativamente ao que se passa no mundo em geral.

Pode contar um pouco o seu percurso enquanto activista? 

ES: Comecei no activismo por volta de 2002 quando vi nas redes sociais a notícia do assassinato de Gwen Araújo nos EUA. A descrição dos acontecimentos marcou-me e desde aí transformei o meu blogue, mais a nível pessoal, para um do tipo de noticiário, onde postava notícias de acontecimentos que ia apanhando por aí, sempre na temática trans obviamente, junto com a minha melhor amiga e companheira Lara Crespo. Desde essa altura e até 2006, o meu activismo foi mais ou menos desta forma, o único evento público a que ia era à MOL de Lisboa. Em 2006, como se sabe, deu-se aquele terrível acontecimento do assassinato de Gisberta Salce Júnior, no Porto, e foi aí que entrei definitivamente no activismo, tendo participado numa concentração frente à Assembleia da República como protesto pelo assassinato de Gisberta, em que, apesar das convocações emitidas, éramos três as pessoas trans presentes: eu, a Lara Crespo e a Jó Bernardo.

Pode nos falar da sua experiência enquanto activista pelo Grupo Transexual Portugal (GTP)?

ES:  O GTP surgiu da necessidade que sentimos na época (por volta de 2011) da existência de uma associação/grupo independente para a comunidade trans. A aT tinha acabado e não existia uma associação que defendesse exclusivamente os direitos das pessoas Trans. E assim eu e a Lara Crespo decidimos formar o GTP como grupo de pressão para os assuntos trans totalmente livre de influências. Desde essa altura participámos em inúmeros debates, encontros, reuniões, entrevistas,  manifestações, nas marchas de Lisboa, contribuímos na elaboração das leis trans, demos o nosso contributo para a STOP trans pathologization, quase sempre em estreita colaboração com as Panteras Rosa. Tem sido gratificante o trabalho que temos realizado, não só na participação de leis, ainda que insuficientes para as especificidades das pessoas Trans, pela ajuda que temos prestado a quem nos procura, sobretudo com pedidos de informação.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. Quais as consequências que verificaram no vosso trabalho?

ES: A maior consequência foi a transformação dos pedidos que nos chegam, que deixaram de ser de informações e transformaram-se em pedidos de ajuda de pessoas que de um momento para o outro ficaram sem casa, sem comida, sem dinheiro e que encaminhamos para redes de apoio que entretanto se formaram. Devido à pandemia e ao confinamento os eventos públicos têm sido cancelados portanto temos ficado mais activos virtualmente.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que acha que ainda falta fazer?

ES: Ainda há muita coisa a fazer, mas basicamente, e em relação à temática trans, há uma necessidade premente de educação. A nosso ver, enquanto não existir uma educação inclusiva da realidade trans nas nossas escolas, os casos de transfobia e discriminação vão continuar a suceder e a propagarem-se. A nível de cirurgias há que descentralizar e formar no mínimo três centros (norte, centro e sul) em vez de um único em Coimbra, e aumentar a qualidade das mesmas, que desde a saída do Dr. Décio Ferreira têm tido um decréscimo abrupto de qualidade. Falta também a inclusão da identidade de género no Artº 13ª da Constituição, coisa pelo que me tenho batido desde antes do GTP existir.

Que projectos tem para o futuro?

ES: Enquanto tiver disponibilidade, forças e saúde, continuar no activismo, se não por mim pela memória de Lara.

Dia Internacional da Mulher

Iara Lugatte

08 de Março 2021

Hoje é o dia Internacional da Mulher, e muito teríamos a dizer sobre Ela, tantas vezes tratada como um ser inferior nas mais diversas esferas, principalmente em relação ao trabalho, ainda que algumas dessas mulheres já tenham conquistado o seu espaço nas áreas que outrora eram ocupadas por homens: medicina, magistratura, polícia, psicologia, contabilidade, direito, engenharia, etc., algumas ainda não auferem os mesmos salários que os homens.

Isso nos remete para o mito da Lilith que reforça a luta da mulher para fazer valer a sua força anímica, visceral e intelectual.

A Lilith representa o arquétipo da mulher dona do seu desejo, livre e determinada, rebelando-se contra as ordens de Deus que a criou como a primeira mulher de Adão.

Ao contrário de Eva – segundo os escritos bíblicos – que foi criada a partir da costela de Adão, a Lilith foi criada da mesma matéria que Adão foi criado: o barro. Logo, para Lilith seria inconcebível aceitar ocupar um lugar de inferioridade na vida de Adão. Assim, ela rebela-se, e não aceita submeter-se a figura masculina, e ainda mais, quando ela teria que ficar por baixo do corpo de Adão no momento do coito, ela não aceita isso. Lilith, então decide exilar-se, e Deus cria Eva, a segunda mulher de Adão para que ele não ficasse só.

Para a Psicologia Analítica de Carl Jung, o mito da Lilith está fundamentado em 3 arquétipos que compõem a nossa psique: animus (o masculino; racional); anima (o feminino; espírito ou força vital) e a sombra, que pode ser interpretado como o nosso inconsciente.

E, neste dia, queremos homenagear todas as mulheres que ousaram viver os seus sonhos, alimentando os seus desejos, respeitando os seus corpos, traçando os caminhos que queriam percorrer, fazendo as suas escolhas, entregando-se ao amor e conduzindo a sua sexualidade em busca do prazer pleno, sem reservas.

À Lilith, arquétipo da mulher primordial, inteira e imortal, início e fim da nossa individuação, aquela que faz morada dentro de nós, a nossa homenagem.

Sexo e Sexualidade

Iara Lugatte

05 de Março 2021

Existe diferença entre sexo e sexualidade?

Esta é uma pergunta que muitas pessoas fazem, independente da idade. Entretanto, essa dúvida é mais comum entre adolescentes que estão no início da sua vida sexual. Há muita informação sobre sexo, mas muita desinformação sobre a sexualidade, daí a confusão.

Afinal, qual é a diferença entre sexo e sexualidade?

Primeiramente, todos nós temos sexualidade, e a vivenciamos desde o nascimento até a morte. O bebé, por exemplo, sente prazer através do contato físico com a mãe quando acarinhado; da amamentação; dos cuidados de higiene; quando o bebé chucha o dedo, etc., e não tem nada de sexual nisso, mas desperta prazer no bebé quando ele é tocado, alimentado e acarinhado, isto é sexualidade. Segundo Freud, “a sexualidade pode ser entendida como uma carga energética que se distribui pelo corpo de maneiras distintas (1905)”.

Mas os equívocos sobre sexo e sexualidade continuam, e as dúvidas são muitas. O que importa é buscar informações confiáveis para entender que quando se fala de sexualidade, esta, está referenciada ao conceito freudiano de sexualidade, envolvendo a nossa capacidade humana de expressar tudo o que sentimos, vivemos e desejamos. O prazer pela vida, por exemplo, faz parte desse conceito.

Enquanto que sexo é a definição de tudo que envolve, genitalidade, relações sexuais, sedução, paixão, desejo, intimidade, toque, beijo, cheiro, amor, etc., entre duas pessoas que se envolvem eroticamente em busca do prazer sexual.

Ainda hoje nos deparamos com preconceitos, medos e falsas crenças sobre a sexualidade, quando na verdade a sexualidade é um conceito muito mais abrangente do que se supõe e, sim, o sexo é só uma parte da sexualidade, uma das fontes de prazer, mas não toda a sexualidade. De toda maneira, é impossível separar a sexualidade do corpo, pois todo o nosso sentir passa pelo nosso corpo, logo, não existe corpo sem sexualidade. Freud estava certo.

E, a partir dos postulados freudianos, podemos entender que a sexualidade é universal, e faz parte da existência humana, embora seja particular para cada pessoa, pois envolve outros aspectos, inclusive culturais, morais, religiosos…o que a torna singular.

LaBaq

29 de Fevereiro 2021

“Não abre mão de você por nada”

Larissa Nalini ou Labaq, a pessoa e a música misturadas porque muitas acções se cruzam e todas as pessoas à sua maneira são activistas e tornam o mundo mais inclusivo e diversificado.

Quem é Larissa Nalini por detrás de Labaq?

Labaq: Um ser humano crescendo todos os dias, aprendendo com erros e acertos. Aberta a pessoas diferentes, experiências diferentes, universos, tudo que uma curiosa tem direito. Italo-brasileira, panssexual, compositora, produtora musical e amante da música e de toda forma de arte existente.

Como surgiu o nome “Labaq”?

Labaq: Foi “Larissa Baq” um dia, encurtei pra Labaq por achar sonoro e curtir nomes curtos. O “Baq” veio de um apelido que eu tive no final da minha adolescência, proveniente do meu contato com a percussão/bateria e ritmos afro-brasileiros. “Baque” é como chamam o bloco de maracatu, ritmo e manifestação cultural de Pernambuco, nordeste do Brasil. <3

Em relação à tua música como a descreves? Existe alguma mensagem que tentas passar através dela?

Labaq: Eu descreveria, ludicamente, como uma sincera síntese do meu mood no momento da composição e produção. Musicalmente, acho que caibo nas caixas do pop/mpb/indie/eletro-pop, algo por aí. Acho que tem assuntos que se repetem nas minhas músicas, esperança, amor, respeito, não-monogamia, sexo, tudo que faz parte de mim e da minha vida vai estar ali sempre, acho que eu não saberia fazer de outra forma.

Como vês o panorama da cultura, nomeadamente no que concerne à abertura do público para receber o conteúdo produzido por artistas queer?

Labaq: Sinto que nos últimos 5 anos nós demos passos extremamente importantes na nossa história, devido ao trabalho, coragem e dedicação de toda uma comunidade. Ainda são passos lentos mas eu gosto de olhar pra esses passos com orgulho e foco em poder construir paredes sólidas ao redor deles, sabe? Proteger o que já conquistamos e planejar com cuidado o que vem por aí, o que pode vir, juntes. Ter Pabllo Vittar com essa visibilidade mundial, por exemplo, e só um dos sinais de que temos força o bastante pra nos levantar. O desafio esbarra nos preconceitos de quem não nos deixa subir pela nossa sexualidade, gênero, posicionamento político, mas disso nós já sabemos. Existir exige coragem, né? Falar pra quem não quer que existamos exige mil vezes mais.

Consideras que existem travões para artistas queer, da parte das produtoras, órgãos de comunicação, artistas, etc?

Labaq: Existem, claro. Desconstruir os padrões homofóbicos que estão nas estruturas da nossa sociedade vai ser um processo longo e lento, mas temos força e o faremos. <3

Portugal é um país em evolução e a cada ano que passa mais legislação surge em protecção da população LGBTI+. Como vês essa evolução comparativamente ao teu país de origem?

Labaq: Com um alívio imenso de que, na altura em que o mundo se encontra, dando tantos passos pra trás em relação às conquistas dos direitos humanos em todo lado, Portugal possa olhar em frente. Impossível comparar com o Brasil sem cair na tristeza, o meu país vai passar ainda por muitos anos de retrocesso antes de caminhar para um futuro mais justo e digno para todes.

Que projectos tens para o futuro?

Labaq: Alguns singles a serem lançados, meu primeiro vinil a ser editado também esse ano, algumas surpresinhas. Também é o ano em que assino a produção de singles, álbuns e remixes de terceiros, estudo produção musical no Porto atualmente e esse tem sido um desafio muito giro.

Diogo Rivers

30 de Janeiro 2021

“As nossas lutas nunca foram banhadas de facilitismo. Nunca foi fácil nem nunca vai ser.”

Conhecemos o trabalho de Diogo Rivers há já algum tempo e em 2019 tivemos o prazer de dançar ao som da sua playlist no Tito´s Bar num dos nossos convívios. Celebrou connosco o segundo aniversário da nossa associação em Fevereiro de 2020 e faz parte do nosso painel do Descentracenas como representante da PATH Coimbra. É um activista do Norte em terras do Centro mas deixamos que ele desvende mais sobre quem é Diogo Rivers.

Quem é Diogo Rivers além de activista pelos direitos LGBTI+?

DR: É sempre um pouco complicado fazer essa reflexão quando o activismo é tão centralizante na minha identidade. Não é, de todo, determinante, mas é uma parte muito importante da maneira como eu próprio me movimento pelos meus espaços de ócio e laborais. Mas, de qualquer forma, também faço produção e programação cultural, principalmente a nível da cultura geek (com a equipa Pop Team Coimbra e com algumas colaborações com a Nintendo Portugal); sou DJ, como vocês já referiram, entre xs Sad Butch Collective (com a Joana Castanheira, também camarada do activismo queer), em drag (enquanto Magda Deneuve) e em nome próprio (gosto de me chamar Fka Rivers, em referência à enorme Fka Twigs); e agora estou envolvido em alguns projectos musicais, uma coisa que já não fazia há alguns anos. Também escrevo umas coisas e tiro umas fotos. Mas no fundo, está tudo interligado.

Podes contar um pouco o teu percurso enquanto activista?

DR: Não sei bem meter uma data no início do meu percurso enquanto activista, mas sei que tem ligações com a maneira como as minhas directoras de turma durante o terceiro ciclo nos falavam sobre direitos humanos, principalmente sobre racismo, xenofobia e feminismo. Foi um pouco por aí que começou, mas sem grande politização. No entanto, durante o secundário já estava muito agressivamente a ser pró-direitos LGBTI+, e quando entrei na faculdade em Coimbra consegui não só enquadrar melhor a minha fome pela luta com algum fundamento académico e político. Por enquanto, o meu foco é sempre na ligação entre a academia e a rua, e na interseccionalidade entre os direitos humanos e a luta de classes.

Queres falar da tua experiência enquanto Magda Deneuve?

DR: A Magda ainda é uma ideia por realizar a 100%, ainda está um pouco há procura de uma identidade mais focada e concretizada, mas por enquanto ela já andou e anda por aí a fazer das suas! O meu interesse por drag aparece um pouco pela procura de expressividade de género na arte, o que me levou, obviamente, a filmes do John Waters (com a eterna Divine) e eu próprio, quando fazia teatro, a fazer papéis femininos ou que exigissem uma postura de reflexão identitária mais camp, por assim dizer. Obviamente RuPaul’s Drag Race também teve uma importância muito grande no meu interesse por drag, mas também não posso ignorar a influência que filmes como o Polyester, Female Trouble, The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert e La Cage Aux Folles teve na própria Magda.

A primeira vez que ela se materializou foi para um projecto de performance que se chamou “A Magda Não Existe”, um pouco de exploração de expressividade não-binária a partir de fotografia e costura, para uma amiga, camarada e artista que admiro imenso e que foi muito importante também para o meu desenvolvimento pessoal, a Ana Sousa. Desde aí que o interesse foi só exponencialmente subindo.

Eu gosto de pensar que a Magda é uma explicadora de francês durante o dia e uma lutadora antifascista durante a noite; um bocadinho de New Romantics com um bocadinho de Cosplay; um monstro sem forma com uma sensibilidade humana. É obviamente 80s em França, com um bocadinho de 90s Riot Girl nos Estados Unidos, com um bocadinho também de resistência anti-patriarcado. Inspiro-me imenso no trabalho da Kate Bush, da Beth Ditto (da banda Gossip), da Alison Moyet (da banda Yazoo) e também em actrizes como Catherine Deneuve (pelas razões obvias), Anna Karina, Rita Blanco, Ana Bola…

E tem sido muito bom poder também ter usado a Magda como desculpa para poder criar espaços de produção Drag em Coimbra, desde o clássico show transformista ao DJ set all night long ao activismo directo na rua. E saber que há pessoas que vinham a esses espaços principalmente para ver a Magda. E saber que muitas das queens e performers drag que estão nos circuitos nacionais tiveram algumas das suas primeiras experiências de performance nos espaços que produzi também é uma ótima vitória.

Podes nos falar da tua experiência enquanto activista pela PATH – Plataforma Anti Transfobia e Homofobia de Coimbra?

DR: Entrei na PATH um pouco às três pancadas, mas honestamente, olhando para trás, era o progresso lógico do meu trabalho activista. Aliás, a minha primeira experiência em qualquer acto de ocupação queer de espaços em Coimbra, literalmente a minha primeira festa foi a mítica Fora do Armário, enquanto ainda se realizava noutro bar. Desde aí que fui acompanhando o trabalho da PATH, conectando com os seus colectivos e pessoas, até que eventualmente me envolvo directamente com ela e desde aí que tem sido uma experiência ótima, imensamente gratificante e à qual devo muito do meu crescimento enquanto pessoa. Mesmo que pareça que o meu trabalho lá tem sido só as festas Fora do Armário (o que não é, de todo, uma má coisa), a minha colaboração com a plataforma deu-me várias oportunidades de poder colaborar com outras plataformas, partidos políticos, eventos académicos… Para além de toda a ótima discussão que se faz na mesma, de reflexão sobre a vivência Queer em Coimbra, a ausência de espaços designadamente não-normativos, a dificuldade de transição do espaço académico para as comunidades locais, entre vários outros tópicos. Para não falar da Marcha de Coimbra, o magnum opus do nosso trabalho, que caminha agora para a sua 12ª edição. Tudo isto foi fulcral na maneira como vejo o mundo, me movimento nele, como eu próprio me materializo, e devo muito ao pessoal da plataforma. Aliás, nem consigo imaginar uma vida sem ter estado envolvido com a PATH.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. Quais as consequências que verificaram no vosso trabalho?

DR: Coimbra é uma cidade transitória. Uma cidade académica. Em tempos pré-pandémicos, o nosso grande problema era conseguir ligar o trabalho que era feito em espaços estudantis, na Alta de Coimbra, com a periferia e as pessoas que não estão só presentes durante o ano lectivo, mas sim todos os dias, todos os anos. É um trabalho quase herculeano, dado a própria estrutura sociocultural da cidade. O que a pandemia nos trouxe foi só a confirmação de muitos dos nossos problemas estruturais. A dificuldade em conseguir chegar à comunidade LGBTI+ que não vive directamente no centro da cidade e/ou não é estudante; o silêncio por parte de organismos como a URGOS e das pessoas cuja vida depende deles só ficou mais ensurdecedor; problemas de acesso laboral que a comunidade LGBTI+ local tinha só ficaram mais profundos e o facto de não haver espaços queer antes da pandemia, e com os poucos que nos eram aliados a fecharem dado o choque económico dos confinamentos, ficamos cada vez mais encurralados em espaços que nos exploram e nos oprimem. O facto de não ser seguro, e definitivamente não ser possível de nos manifestarmos activamente na rua também não ajuda o progresso do nosso trabalho pré-pandemia.

Obviamente é preciso ser realista – mas as nossas lutas nunca foram banhadas de facilitismo. Nunca foi fácil nem nunca vai ser. Mas o que importa é que este tempo todo de silêncio obriga-nos a por os pés no chão, calibrar a bússola, atar os atacadores. É complicado, mas a chama ainda está acesa.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que achas que ainda falta fazer?

DR: Imenso. Imenso mesmo. Eu tenho uma visão talvez… um pouco pessimista sobre o progresso dos nossos direitos – costumo dizer que nós ainda não ganhamos nada enquanto alguém ainda tiver a perder alguma coisa – e muitas das vezes isso entra em choque com as óbvias vitórias que todos os activistas nacionais tiveram ao longo do tempo. Ainda assim, é preciso ainda tanto.

É preciso que os corpos ativistas das cidades grandes, como Lisboa, em primeira mão, consigam também olhar e colaborar directamente com órgãos e corpos activistas de outras cidades, principalmente do interior. Criticar fortemente a comercialização das nossas identidades por parte de algumas instituições que, supostamente, nos representam. Exigir autocrítica por parte de grupos que interseccionam a sua luta com a nossa, que nos oiçam e que não nos usem só como acessório contemplador numa descrição na rede social. Perceber que há um foço intelectual, social, cultural e político entre o eixo Porto-Lisboa (que engloba Coimbra) e o resto do país, principalmente com as regiões autónomas e o porquê do discurso ser tão complicado e muitas vezes inexistente. Combater ativamente, e volto a dizer, ativamente, a transfobia que existe nos grupos e colectivos feministas, antifascistas, de resistência. Perceber, efectivamente, que é impossível desligar o ativismo LGBTI+ da luta de classes, que os direitos queer são direitos dos trabalhadores, que por sua vez são direitos humanos. Reivindicar a Marcha, o Pride, como um protesto político, e não como um mercado. Trabalhar a acessibilidade da nossa linguagem de código de maneira a conseguir chegar a pessoas que não tiveram o nosso privilégio de poder estar rodeada dela.

E isto é apenas uma pequena porção de coisas. Há imenso por fazer. Há tudo por fazer. Claro, celebrar as pequenas vitórias é ótimo, mas nada nos garante que não vamos perder a guerra. Tudo, tudo, tudo por fazer. É preciso foco, discussão, coletivismo, bater o pé agora mais que nunca.

Que projectos tens para o futuro?

DR: Vou continuar a fazer “das minhas” – continuar a passar som, continuar a ser o pessimista do ativismo, continuar a ser a “bicha comuna”, continuar a ser a Magda. Mas, se possível, sempre a crescer e cada vez melhor, mais fundamentada, mais certeira, mais icónica. Gostaria de poder voltar ao espaço noturno e voltar a fazer festas para nós, ou continuar a “tour” que foi interrompida pela pandemia, mas por enquanto, é voltar a focar no que realmente interessa – trabalhar em mim para conseguir dar ainda mais para os outros.

Bissexualidade psíquica segundo Freud

Iara Lugatte

22 de Janeiro 2021

Sigmund Freud é a maior e primeira referência da psicanálise e psicologia, tanto no campo teórico como na sua prática.

Segundo Freud, a repressão da sexualidade pode trazer sacrifícios imensos ao sujeito e, quando esse pensador diz que “as emoções não expressas nunca morrem, elas são enterradas vivas e saem das piores formas”, fica muito claro o que ele quer mostrar.

A exemplo dos preconceitos em relação as pessoas LGBTI+ toma grandes proporções quando estes tentam afirmar  e difundir um caráter patológico acerca da homossexualidade, sem sequer fundamentar essa percepção. Sabemos que a sexualidade sempre foi um tema instigante que provoca grande interesse nas pessoas, mesmo nos dias atuais.

Sigmund Freud em 1910, mostra ao mundo o seu artigo sobre a teoria das pulsões, onde evidencia o seu primeiro dualismo pulsional, introduzindo o conceito de pulsão do Eu. Ele afirma que o conflito psíquico se dá entre a pulsão sexual, que está a serviço da sexualidade como um todo, e a pulsão do Eu que se encarrega da conservação do indivíduo. Assim sendo, Freud discorre sobre a tendência de todo ser humano à bissexualidade.

E começa por afirmar que todo bebé é um “perverso polimorfo”, isto quer dizer que toda criança, potencialmente, é capaz de exteriorizar o seu prazer de formas diversas, sem que isso signifique um problema. A criança é capaz de ter experiências prazerosas nas várias zonas do corpo, e com objetos diferenciados e múltiplos. A bissexualidade psíquica, portanto, é uma designação a tudo isto e, o que nos constitui como seres humanos. Isso posto, podemos inferir que as pessoas que se auto definem heteronormativas, trazem essa predisposição à bissexualidade, ainda que nos subterrâneos do seu psiquismo.

Na poesia também se aborda essa questão, mas de outra forma, como faz Carlos Drummond de Andrade neste excerto de “A paixão medida”, apontando-nos para o mesmo caminho do que nos diz Freud sobre a bissexualidade psíquica.

          “Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho ímpar. Igual-desigual”. Drummond

Podemos concluir que bissexualidade psíquica é constitucional do Sujeito do inconsciente, universal nos seres humanos, mas distinta da biologia, bem como do objeto de amor. Logo, suprimir essa parte da constituição humana, é negar ao próximo o direito ao desejo, como nos diz Freud, seria negar a pulsão sexual e a individualidade do outro.

Esta temática é por demais desafiante para não continuarmos a falar sobre a bissexualidade psíquica em outros artigos. E, para fechar este artigo, e retomá-lo mais adiante, deixo-vos um segundo excerto do Mestre Sigmund Freud para uma breve reflexão.

          “Estamos, provavelmente, certos em supor que a importância da sexualidade como fonte de sensações de prazer, isto é, como processo para cumprir os objetivos da vida, decresceu visivelmente. Por vezes, imaginamos, percebemos, que não é só a opressão da cultura, mas a natureza da própria função, que nos nega o prazer completo e nos empurra n’outras direções”. A civilização e os seus descontentamentos (1930)

Continuemos!

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