ARTIGOS – ARQUIVO 2022

Ana, Mahara e o Pride Valley

23 de Novembro 2022

“Antes de tudo, dizei-me: haverá no mundo coisa mais doce e mais preciosa do que a vida”

(Erasmo de Rotterdam , “Elogio da Loucura”). 

Quem são Ana Paula e Mahara além de activistas?

AP: Estudante, eterna aprendiz. Aprender como a sociedade se molda e molda os diversos ramos da nossa existência me fascina, principalmente no que se refere às esferas sociais do comportamento humano. História, Filosofia, Sociologia e Direito são as áreas onde busco aprofundar meus conhecimentos, individualmente por compreender o mundo de forma subjetiva e a natureza subjetiva do ser humano, e socialmente na busca por tentar entender como a organização legal de uma sociedade – ou de um Estado -modificam os parâmetros morais e principalmente éticos de cada pessoa, e ao mesmo tempo, como as mudanças que nós, seres constituintes de uma sociedade, ao passarmos por transformações na realidade social também levamos a adaptações no mundo jurídico. Compreender como a máquina social funciona, se é mesmo como uma engrenagem que provoca mudanças simultâneas nestas duas grandes esferas (individual e legislativa) é um dos meus grandes objetivos enquanto “futura” operadora do Direito, e acima de tudo, como este processo pode e deve levar a melhores condições para as pessoas e suas individualidades – com base em princípios gerais de equidade, universalidade e humanidade, por exemplo.

MH: Mulher, ativista, brasileira, lésbica, imigrante, taurina e professora de história por formação. Costumo dizer que casei com o conhecimento e com o estudo eterno quando escolhi ser professora. De todas as maneiras possíveis de errar quando escolhemos nosso curso muito cedo, aos 17 anos, a minha escolha se fez certa ao escolher a investigação intelectual. Sou muito flexível, extremamente tolerante e compreensiva no que se refere a existência do outro, aos seus traumas, as suas necessidades. Gosto de entender o que faz da sociedade tão diversa, e por isso gosto de colaborar com a compreensão de que a diversidade é necessária e saudável. Porém o fato de ser tolerante e compreensiva me deixa exigente no que se refere a intolerância social. Me chateio com extrema facilidade quando presencio ou tomo conhecimento de atos de preconceito e intolerância, e isso foi o que me motivou desde nova a ser ativista, ainda antes de começar a perceber que para ser ativista é mesmo necessário manutenção de conhecimento. Apesar de todo o caráter ativista, sou uma romântica pela vida, acredito verdadeiramente que cada pessoa pode dar o seu melhor, mesmo que a outra não o faça. Acredito que podemos viver em paz connosco, mesmo que isso seja difícil, e por isso também o meu senso de humor é uma marca muito pessoal. Sou uma piadista sem cura, e adoro poder ver a piada em cada canto da situação ou da pessoa, e é claro que seria assim, afinal, meu ascendente é em gêmeos.

Pode contar um pouco sobre o vosso percurso enquanto activistas?

MH: Acredito que sou ativista desde que fui educada por 3 mulheres que diariamente contestavam o sistema e as imposições patriarcais, com consciência ou não elas sempre resistiram. E por isso me foi permitido entrar na universidade já com conhecimento da minha sexualidade, foi sempre incutido em mim o poder liberdade do ser e estar. Por isso já percebi as dificuldades em ser mulher, e para mais, mulher lésbica. Foi na faculdade que moldei qual tipo de ativista eu seria, apesar que uma maneira de ser ativo não subtrai outras. O interessante é que a primeira vez que fui para as ruas não foi pelo ativismo sexual ou de gênero, mas sim pelo da verba estatal que não chegava inteira na universidade e por isso precisamos fazer greve, então administrativos, professores e alunos foram para o meio da estrada queimar pneus e pedir ao Estado condições de trabalho e ensino. E pronto, amei aquela “bagunça”, aquela força, aquele desejo de mudança, aquele sentir-se ativo, e ser ativista.

E ao ter contato com a diversidade de cor, sexualidade, pensamentos, culturas e todas as diferenças que uma universidade te apresenta, eu me apaixonei pelo diverso, pelo que cada pessoa pode ser, e quero muito poder ser ativa nisso, nesse direito da pessoa, nesse respeito pelo mútuo.

AP: É muito difícil para mim determinar um início de ativismo ou um percurso como ativista, até porque isto começou a fazer parte da minha vida há pouco tempo, necessariamente aqui em Portugal com o início da Pride Valley e todas as conexões e possibilidades que foram se formando até hoje.

Posso dizer que desde muito cedo foi me ensinado a questionar o mundo e as “verdades absolutas”, isto graças ao sistema de ensino público da minha cidade no Brasil, que não por via de regra sobre todo sistema público de ensino de lá, foi de excelente qualidade em todo meu percurso de formação até o final do ensino médio (secundário).

Agradeço sempre às pessoas que lecionavam nos locais que frequentei e que me ensinaram que nós podíamos ser sempre mais do que algumas que tentavam nos limitar, que ensinavam que a educação é sempre um dos melhores caminhos para se seguir. Muito por conta disso posso dizer que foi aí que meu caminho como “ativista” se iniciou.

Além disso, o contexto social que nos envolve é responsável por nos ensinar coisas tão grandiosas que talvez os professores não o conseguem em sala de aula.

Como não ser ativista sendo de família pobre, sempre beneficiada por políticas públicas sociais (pensamos no Brasil de 15/12 anos atrás) e entendendo a importância que estas políticas tiveram na possibilidade de subsistência de uma família de mulheres fortes (avó e netas)?

E mais, quando se tem consciência da sua sexualidade, acende-se ainda mais a veia da luta pela igualdade de tratamentos, pelo fim de uma violência descabida e de um preconceito socialmente construído na cabeça de uns, e aceito como verdade nessas mesmas cabeças. Finalmente, adentrar ao mundo do Direito foi uma janela que se abriu para inúmeras oportunidades e aliado ao pensamento e consciência social pretendo, enveredando por caminhos ainda não totalmente certos, fazer ainda mais diferença na vida da Ana Paula como ativista.

O que é o Pride Valley e como começou?

AP e MH: Nós somos da área de humanas, nunca empreender esteve efetivamente na nossa programação, acho que nem aprendemos isso durante a vida na nossa área de conhecimento. Mas ao chegar em Portugal percebemos uma necessidade ímpar de visibilidade e orgulho nas pessoas LGBTQIAP+. Quando chegamos em 2019 a militância estava a tomar cada vez mais força, e continua em crescimento. A prova disso é que há mais cidades portuguesas com marchas LGBTQIAP+ anuais, mesmo que seja algo recente. Pensamos que ao compararmos esse processo de orgulho e visibilidade com o que já vivíamos no Brasil, aqui faltava um passo muito importante, que vem com o tempo, mas que é necessário, que é perder a vergonha de se mostrar LGBTQIAP+. Então pensamos: como isso seria possível? Um dos meios, além da conscientização, a conversa, e a presença ativa dos movimentos é o visual, é o que se pode sentir todos os dias. Isso quer dizer, abrir seu guarda-roupas e escolher um t-shirt LGBTQIAP+, escolher seu acessório nas cores do arco-íris é diário, não acontece uma vez por ano. No entanto, para que isso acontecesse também era necessário ter uma loja que promovesse venda desses artigos de maneira que a comunidade LGBTQIAP+ se sentisse em casa, sem preconceitos ou sem ser explorada.

Foi nesse contexto e no contexto pandémico que surge a Pride, para tentar complementar.

De que forma é que o projecto tem impacto na população LGBTI+? Têm receio que vos vejam como uma forma de pinkwashing?

AP e MH: O impacto que se espera é a naturalização das cores LGBTQIAP+, é a necessidade diária de escolher ser comunidade visualmente para sociedade, além da ideia da sexualização promíscua que sofremos. Pois como comunidade estamos em todos os lugares, somos pessoas que trabalham, que tem família, amigos, que bebem, que brincam, que contam piadas, que choram e que sangram como qualquer outra pessoa. Você poder ir à praça para encontrar um familiar e poder colocar sua t-shirt LGBTQIAP+ faz toda a diferença, porque é um ato cotidiano, é como ser específico e singular se faz importante no coletivo, no geral.

Quanto ao pinkwashing, sim, sempre será uma visão que terão da Pride Valley uma hora ou outra. E isso acontece porque o pinkwashing é uma prática antiga, principalmente no mês de junho e datas comemorativas como o natal, dia das pessoas que se amam e afins. Acho que o maior desafio da Pride é também provar que não se trata de um projeto de pinkwashing, mas essa prova não acontece por uma força extraordinária que fazemos, mas sim de maneira natural. Até porque a Pride Valley é a Mahara e a Ana Paula também, e isso demanda tempo para ser percebido.

Ser ativista e escolher ser empreendedor são características ainda muito opostas socialmente, principalmente porque ser ativista é romantizado. Somos ativistas por amor, mas não pensamos que somos ativistas porque precisamos ser, porque ainda há uma força violenta pela qual somos empurrados, e mais que isso, somos ativistas, mas não deixamos de ter nossas necessidades individuais como comer, beber, vestir, ler, pagar contas, precisamos subsistir e viver.

Em que outros projectos participam de momento?

AP e MH: Não temos nenhum outro projeto nosso no momento, além da Pride. O que fazemos é uma organização da rotina para estarmos o mais próximas possível dos coletivos e das suas necessidades. Isso quer dizer, eventos, projetos ou ideias dos coletivos em Portugal nós temos uma tendência a abraçar sempre. É o que conseguimos fazer também, porque nossa rotina é muito massacrante.  

Quais foram as barreiras que mais sentiram na vossa vinda para Portugal?

AP e MH: Sentimos muitas barreiras voltadas para o lado sentimental e da perda da proximidade física com pessoas que estavam no nosso contexto diário, como a família e os amigos, principalmente. Continua a ser uma barreira diária enfrentar a saudade e a falta de um acolhimento específico destas pessoas, por vezes.

Depois, acredito que foi o medo do desconhecido, de uma cultura, tradições, costumes e palavras diferentes, porque apesar de falarmos a mesma língua existem diferenças em alguns termos, e até dos sotaques.

Além disso, o medo de ter de iniciar a vida do zero, mas tudo foi encarado com coragem, e aqui estamos nós!

Esses receios e medos individuais também se aliaram as situações de preconceito que que convivemos diariamente.

Falo por mim este parágrafo (Ana Paula), que trabalho no atendimento ao público desde que aqui cheguei, e já passei por situações difíceis, constrangedoras, irritantes e irracionais, por parte de pessoas que acreditam ser superiores a outras por conta da sua nacionalidade. Pessoas que escutam o sotaque “brasileiro” e automaticamente te tratam de forma diferente e inferior, que conseguem transferir em poucos minutos de atendimento o seu desprezo por uma cultura e povo, os seus preconceitos enraizados e o seu sentimento de colonizadores e “salvadores” de um povo. Isto é enfrentar diariamente a Xenofobia, em níveis diversos, mas ela sempre está ali.

Em contraposição, encontramos com pessoas incríveis, super politizadas, que compreendem um indivíduo que emigra, possuem empatia, carinho e um respeito gigante. É verdade que encontramos pessoas desafiadoras pela estrada, mas admitimos que as boas pessoas fazem o processo valer a pena. A xenofobia, o machismo, a LGBTQIAP+fobia não são sentidas só por nós, o que buscamos fazer é nos rodear de similares, e juntar luta contra o sistema que permite que discursos preconceituosos criem força.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que acha que ainda falta fazer?

AP e MH: O termo “falta fazer” não condiz com a realidade dos movimentos em Portugal. Acredito que precisamos perceber que a sociedade tem seu processo, seu tempo e suas necessidades culturais e sociais. Por isso, comparar efetivamente o panorama de direitos brasileiro com o português não pode ser efetivamente válido, afinal falamos de um Brasil com 215 milhões de habitantes, 21 vezes maior que a população em Portugal. E falamos de um Brasil que, infelizmente, sofre de misérias e imediatismos que a população portuguesa desconhece. O que posso afirmar, é que o percurso que Portugal traça, nós no Brasil já vamos percorrendo a alguns anos, e é maravilhoso o resultado, mas também é extremamente desafiador, visto que “os ratos saem da toca” quando conquistamos mais direitos e somos cada vez mais tratados como iguais. E por ser um processo, acredito que o direito de família português ainda deva ser repensado, quando se trata da proteção patrimonial dos casais LGBT’S e das diversas formas de se constituir uma família, além do casamento, visto que, a União de facto não assegura direitos igualmente a instituição do casamento, sendo o casamento ainda supervalorizado, por estar arraigado à conceção cristã que ainda versa o Estado português.

No entanto, deixo aqui, a admiração pelo trabalho magnífico, processual e muito comprometido das associações e apoiantes da causa. Esse trabalho de conscientização, de manutenção da informação através de discussões periódicas, a busca pelo apoio popular e estatal nos eventos, a discussão online, a coragem em contrapor discursos de ódio diariamente, a tentativa de unificar os movimentos em prol das causas sociais, pensar nessa intersecção, lutar contra os partidarismos e politicagens que tendem a se beneficiar do nosso discurso são maneiras efetivas de lutar pelos direitos. Acho que muitas são as formas de luta que vem sido adotadas em Portugal e que vão gerar maravilhosos resultados.

Que projectos têm para o futuro?

AP e MH: Para já estamos muito atentas as condições políticas e econômicas de Portugal. Não conseguimos, dentro da realidade empreendedora, fazer muito mais que temos feito, nem iniciar novos projectos, mesmo que haja muitas ideias e vontades, devido a instabilidade econômica. Dessa forma, vamos manter a Pride Valley no modelo que está hoje, e continuaremos apoiando as associações amigas em seus projetos e iniciativas.

Saúde Mental

Iara Lugatte

04  de Novembro 2022

A Saúde Mental nunca foi valorizada e pensada com a devida importância que esta tem para toda uma sociedade. Muitas pessoas não sabem o caminho que devem seguir para amenizar o que sentem, e que este caminho, deve ser sempre de mão dupla, medicamento para quem precisa, mas não só. A pessoa também precisa ser escutada na sua dor emocional, entender a sua história, que não raro, está na raiz do seu sofrimento, e sua fala não deve ser abafada com a medicação que somente alivia os sintomas.

Quando recebo no meu consultório pessoas com essas queixas, tais como:

– há dias que não me apetece acordar

– o meu corpo dói

– sinto dores que nem sei identificar

– não quero ver/estar com ninguém

– quero ficar só

– como em demasia, até vomitar

– não me apetece comer, só quero dormir

– não tenho vontade de fazer nada

– não quero me olhar no espelho, sinto-me péssima

– irrito-me com as pessoas que amo

– choro muito

– não estou cá a fazer nada

– melhor morrer…quero morrer

Fico em estado de alerta. Esse discurso tem que ser escutado de forma humana, sem julgamentos, para que possamos, nós, profissionais, ajudarmos quem nos procura a encontrar o seu ponto de equilíbrio estimulando o auto-conhecimento e a força psíquica para superar e/ou aprender a lidar com os seus problemas. Isso é saúde mental, também.

Outro ponto importante é a compreensão da sociedade e o investimento nesse campo. A saúde mental necessita de mais investimento do Estado e nas pessoas especializadas dessa área. Para além disso, é fundamental que se fale com clareza sobre o tema, principalmente nas escolas, sem preconceitos. Não se deve estigmatizar a doença mental, atitude que vemos ainda nos dias atuais, em pleno século XXI, sem nenhuma reflexão a respeito, uma vez que essa deve ser tratada como qualquer outro “desconforto” do ser humano.

E, para finalizar, muitas descompensações emocionais e/ou psíquicas não são somente de origem biológica como apregoam inclusive as pessoas especializadas da área médica, que NUNCA trabalham em parceria com especialistas em psicologia clínica, visando, única e exclusivamente, a saúde e o bem-estar do paciente. Pensemos que outros fatores estão envolvidos nesse estado de saúde, como questões familiares, económicas e sociais. Sim, a saúde mental também é um problema social, não só clínico.

Portanto, não basta medicar, é preciso escutar a dor de quem nos procura, aquela que ninguém vê porque não se vê…se escuta.

Raquel Afonso e a Homossexualidade no Estado Novo

01 de Maio de 2022

Quem é Raquel Afonso?

RA: Antes de mais, gostaria de agradecer o interesse demonstrado neste trabalho!
Sou antropóloga. Fiz licenciatura e mestrado na área e, neste momento, estou a fazer doutoramento em Estudos de Género, no qual pretendo elaborar uma comparação da homossexualidade, lesbianismo e formas de resistir na Península Ibérica, durante as ditaduras do século XX.

Quanto ao ativismo… Fui seguindo o movimento LGBTI e feminista, embora sem grande participação dentro dos vários grupos. Recentemente, juntei-me às Panteras Rosa.

O que te motivou para escrever o livro “Homossexualidade e Resistência no Estado novo”?

RA: Durante a licenciatura, as alunas e os alunos têm que elaborar vários trabalhos nas cadeiras que fazem e eu fui sempre aproveitando esses trabalhos para procurar saber mais sobre a comunidade LGBTI. Durante o mestrado podíamos escolher uma cadeira de opção livre, e optei por realizar uma no Mestrado de Estudos sobre as Mulheres. Mais uma vez, tínhamos que elaborar um trabalho. E escolhi fazer sobre os direitos LGBTI em Portugal, numa perspetiva diacrónica. Foi aí que percebi que havia imensos estudos sobre a situação legal LGBTI no país, por exemplo, mas sobre tempos recentes. E que havia uma lacuna no pré-25 de abril, como se não existissem homossexuais na ditadura. Fiz alguma pesquisa e encontrei alguns trabalhos, mas poucos. Sobre o facto de ser crime, doença… Sobre algumas pessoas conhecidas. Mas sobre as desconhecidas nada. Como me apaixonei pelos Estudos sobre Memória, e isso devo-o a Paula Godinho, decidi juntar os dois assuntos. A homossexualidade (e o lesbianismo) durante a ditadura portuguesa, através do resgate de memórias de pessoas que viveram esse período. Foi isso que me motivou a investigar este tema. Depois tive a sorte de ter uma Editora que quis publicar a tese de mestrado, a Lua Eléctrica.

Que impacto teve para as pessoas que entrevistaste falar sobre as suas histórias de vida?

RA: Bom, talvez essa pergunta tivesse que ser feita às pessoas que entrevistei. No entanto, posso dizer que conheci 17 pessoas, só 12 falaram comigo e só utilizo 10 histórias de vida no livro. Tive pessoas que não quiseram falar, assim que souberam a temática que estava a desenvolver, e tive pessoas, que já depois da entrevista realizada, não quiseram participar. Foi difícil. E às vezes desanimador. Mas as pessoas que se disponibilizaram, decidiram fazê-lo porque, e lembro-me bem, me “queriam ajudar”, queriam “dar o seu contributo”, visibilizar uma parte da história que estava na sombra. E essa “disponibilidade”, esse “apoio” que essas pessoas me deram também teve que ver com a relação de confiança que fui estabelecendo com elas nas conversas que tínhamos e numa base de partilha. Eles e elas tiveram que me conhecer primeiro, para eu os conhecer depois.

As histórias de cada pessoa vão sendo esquecidas com o tempo, se não forem contadas. Achas que em Portugal se dá importância aos testemunhos e vivências das pessoas LGBTI+?

RA: Acho que cada vez mais existe essa perceção e isso vê-se pelas várias iniciativas que têm sido desenvolvidas a nível de associações, por exemplo, e também pelo aumento de estudos académicos que procuram resgatar esses testemunhos e trabalhar sobre a época da ditadura portuguesa.

Em que outros projectos participas de momento?

RA: Neste momento estou a fazer doutoramento, como disse anteriormente, e dedico-me exclusivamente a essa investigação. Alarguei o terreno e estou a tentar fazer uma comparação da homossexualidade, lesbianismo e resistência nas ditaduras de Franco e Salazar. O objetivo é perceber semelhanças e diferenças entre as opressões dos Estados e a opressão social e também se as pessoas resistiam, ou não, da mesma forma.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que achas que ainda falta fazer?

RA: Apesar do muito que se conquistou em relação aos direitos LGBTI, a homofobia ainda está (demasiado) presente numa sociedade que se diz democrática. Não só a homofobia, como o machismo, o racismo, a xenofobia… São questões que têm que continuar a ser trabalhadas, trazidas para a praça pública, a gerar discussão… Originar uma educação diferente, mais inclusiva. Isso é muito importante para ajudar uma nova geração a crescer com mais igualdade e menos discriminação.

Que projectos tens para o futuro?

RA: Para já, terminar o doutoramento… Depois logo se vê!

O amor e as suas variações

Iara Lugatte

02 Março 2022

Quando nos apaixonamos, vários são os fatores envolvidos que determinam parte do nosso apaixonamento. E muitos desses fatores, nós os reconhecemos e nomeamos, outros não. Podemos reparar na aparência agradável da outra pessoa; na  sua inteligência; no seu humor;  na afinidade de interesses, e muito mais coisas, conscientemente. Mas outros fatores não estão claros para nós, por que não estamos tão conscientes assim. Por vezes, aquilo que, racionalmente, encaramos como um defeito da outra pessoa seja, justamente, o que nos seduziu, inconscientemente.

É bastante comum ouvir que os opostos se atraem, e talvez se atraiam mesmo, até como uma forma de compensação. Podemos imaginar duas pessoas como um sistema que deve se auto-regular, mas encontramos pares que são extremamente diferentes entre si e, de alguma forma, um precisa do outro para equilibrar aspectos da natureza de ambos que são muito extremados ou unilaterais.

Platão, em “O Banquete”, conta sobre o mito do hermafroditismo, – hoje nomeado intersexualidade – que homem e mulher constituíam um único ser, completo e satisfeito. Um dia, Zeus o todo poderoso deus do Olimpo na mitologia grega, os separou e, assim, condenou que cada homem e cada mulher dirigisse suas energias em busca de sua metade durante a vida para que se sentissem inteiros novamente.

Logo, a nossa busca pela outra metade, afetivamente e sexualmente, nos diz muito sobre a perda de nossa inteireza, de nossa unidade, mas também da  dificuldade em encontrarmos esse algo que nos preencha. Isso acaba por facilitar a criação de uma fantasia que nos faz acreditar que a responsabilidade da nossa incompletude está nas mãos de outra(s) pessoa(s), cabendo a ela(s) a nossa completude.

Mas nada é mais pesado para a vida do que a frustração por não ter conseguido fazer outras pessoas felizes e vice-versa, como se isso fosse possível. Na verdade, tudo isto é um equívoco, e não raro uma exigência pessoal que envolve a desresponsabilização da outra parte. O ideal é que cada pessoa faça a sua parte, responsabilizando-se pelas suas próprias incertezas, pois não há completude, o que há é a falta…essa falta que a falta faz é o que nos sustenta em todas as áreas da nossa vida, mas também é isso que não se suporta.

E, assim somos, seres incompletos e imperfeitos, vivendo em busca daquilo que nunca preencherá o buraco cheio de vazio que é a nossa sexualidade…a nossa existência.

Género e Religião

Sofia Moreira

11 Fevereiro 2022

Em Portugal a religião é uma tradição ainda muito enraizada. Vemos a nossa socialização, o nosso crescimento e o nosso quotidiano ainda toldados por regras ditadas pela Igreja Católica. Mas a que custo é que isto ainda acontece? Vemos direitos serem retirados e atrocidades serem cometidas em nome da religião. Até quando? É urgente um debate sobre este tema e pretendemos fazer uma introdução ao tema cruzando com outro que nos é muito próximo: o género.

Então, comecemos por dissecar este binómio género-religião. Numa visão mais tradicionalista é quase uma utopia trazer estes conceitos lado a lado, pois são vistos como opostos. Isto é, sendo a religião e todas as suas teses tidas como puras, incontestáveis e sagradas, juntar-lhe o conceito de género, que é por si um conceito volátil, que se adapta a cada sociedade, contexto histórico e cultural, pode tratar-se de um choque. Por outro lado, tanto o género como a religião são estruturas que disseminam o poder e ambas têm hierarquias intrínsecas e a religião é um dos pilares cruciais para a manutenção das desigualdades que ainda permanecem quando se fala em género.

É facilmente observável que a maioria do poder dentro da Igreja Católica se concentra nos homens, causando um grande desequilíbrio, é a estes que cabe a tomada de decisões, ou seja, definem normas, crenças e doutrinas. Por outro lado, vemos a mulher com um papel maioritariamente doméstico (assim definido pela Igreja Católica) pois, se o papel decisório cabia aos homens, às mulheres era destinada a missão de a praticar, preservar e transmitir.

Também a Igreja Católica tende a tornar como suas questões que diriam respeito apenas à vida privada das pessoas e tende a ditar normas sobre elas, são exemplos: os corpos das pessoas, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a homoparentalidade, a regularização do trabalho sexual, os direitos reprodutivos. Quando isto acontece, para além de se estar a invadir o foro íntimo da pessoa, tentando decidir algo por ela, está a haver uma oposição clara aos direitos humanos. Isto levanta, também, a questão da secularização: ao tentar condicionar legislação, regulamentos, comportamentos, mentalidades vai-se perdendo a condição de laico que o Estado deveria ter ao deixar que a Igreja Católica tenha um papel tão decisivo. E, assim, vemos a linha ténue que existe entre o Estado e a Religião ao influenciarem-se mutuamente.

Porém, e como já fomos dando pistas nas linhas acima, quando falamos em género não nos referimos só a homens e mulheres e não são apenas as mulheres as lesadas. Apesar das religiões saberem da existência de mais géneros e orientações sexuais tentam silenciá-las e mantê-las invisíveis, de várias maneiras. Uma das lutas que a Igreja Católica começou, e que prova isto mesmo, foi o facto de apelidarem num tom pejorativo “ideologia de género” quando se referem às questões de género, principalmente no concernente aos estudos sobre este tema e ao ensino do mesmo nas escolas – a política rapidamente se apoderou desta expressão e a usa, até hoje, nos seus discursos, principalmente partidos da extrema-direita. A Igreja Católica afirma que se trata de um ataque aos valores definidos por ela, dizem ser uma forma de desrespeito perante os planos divinos quanto às diferenças e divisões de género e até um ataque à humanidade, apoiando-se na ideia da “natureza humana” para justificar tudo isto e legitimar a discriminação, criticando os estudos que possam opor-se a esta visão.

Há muita resistência por parte da religião católica em separar os termos sexo e género e olhar para uma pessoa para além disso, isto é, como para a Igreja Católica o importante é a biologia, ao fazer-se uma abordagem ao género como dinâmico e individual, a mesma não sabe como considerar aquela pessoa. O Papa Francisco vai mais longe e afirma que aquilo que Deus nos atribui devia ser considerado um dom e, por isso, não devia ser rejeitado[1]. Contudo, estas palavras são facilmente rebatidas, pegando igualmente numa velha máxima da Igreja Católica que diz que Deus ama e respeita toda a gente, e, por isso, devia amar também todas as pessoas que não se encaixam nos padrões definidos pela sociedade, que têm uma identidade de género e uma orientação sexual diferente, mesmo que isso seja oposto aos ideais da Igreja Instituição em si.

E, assim, percebemos que o verdadeiro medo da  religião Católica é o facto de se verem a perder o controlo e verem alguns dos seus valores basilares (como o casamento monogâmico heterossexual e a reprodução) a se dissolver e a adaptar à realidade de cada indivíduo. Isto leva-nos a outro assunto polémico em que a igreja está envolvida: terapias de conversão. Estas terapias têm como finalidade a “cura” da homossexualidade, não são aplicadas apenas por membros eclesiásticos, mas quando são tendem a ser mais agressivas e têm, normalmente, motivações religiosas. Em 2020 foi criada uma petição em Portugal para que esta prática se torne ilegal e desde aí já foram feitas algumas propostas, por vários partidos, à Assembleia da República com o mesmo objetivo. Há estudos que nos mostram que quem se submete a estas práticas tem 2 a 3 vezes mais probabilidade de cometer suicídio.

Em pleno século XXI não faz sentido ainda haver pessoas que lecionam serem despedidas devido à sua orientação sexual[2], serem vistas como pecadoras[3] e os seus casamentos e funerais serem recusados pela Igreja[4]; pessoas trans terem de criar a sua própria Igreja para se sentirem acolhidas[5]; pessoas serem obrigadas a ser submetidas a “terapia” para que entrem na norma e deixem de ser quem são[6]; pessoas serem perseguidas devido à sua orientação sexual/identidade de género. Apesar dos avanços que foram surgindo ao longo dos anos, notórios em alguns documentos oficiais já com vislumbres feministas, vê-se ainda alguma resistência no que diz respeito à liberdade das pessoas, principalmente LGBTI+.

O facto de o Estado ainda não estar totalmente isento e liberto da influência religiosa também torna mais lento o avanço esperado. É importante continuar a batalhar para que o ensino para a cidadania seja administrado corretamente e para que chegue a todas as pessoas, pois trata-se apenas de ensinar para a não discriminação, para a não violência e tentar que todas as pessoas se sintam de alguma forma representadas.

[1]https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20160319_amoris-laetitia.html

[2]https://www.theguardian.com/world/2021/nov/21/christian-schools-us-religious-freedom-fire-gay-teachers

[3]https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20210222_responsum-dubium-unioni_po.html

[4]http://www.ilga-europe.org/sites/default/files/Attachments/the_right_to_freedom_of_religion_or_belief_and_its_intersection_with_other_rights_.pdf

[5]https://pt.euronews.com/2021/11/16/igreja-trans-abre-os-bracos-aos-duplamente-excluidos-no-brasil

[6]https://www.noticiasmagazine.pt/2021/as-chagas-das-terapias-de-conversao-para-homossexuais/historias/267418/

Sugestões de leituras complementares e científicas:

As diferenças de género na prática e no significa da religião: https://periodicos.fclar.unesp.br/estudos/article/view/5974/4527

Diversidade, identidade de género e religião: algumas reflexões: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaempauta/article/view/2940

Estudo sobre a discriminação em função da orientação sexual e da identidade de género: http://bibliobase.sermais.pt:8008/BiblioNET/upload/PDF2/0892_ESTUDO_ORIENTACAOSEXUAL_IDENTID.pdf

Religião, género e cidadania sexual: Uma introdução: https://journals.openedition.org/rccs/6370

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