Fotografia de Catarina Calças

Ângelo Fernandes, Quebrando o Silêncio

“Ainda existe a crença errada de que os homens e rapazes não podem ser vítimas de violência sexual, o que não corresponde à verdade.”

Quem é Ângelo Fernandes além de activista?

AF:Hoje em dia creio que é difícil separar a vida minha pessoal da profissional. Sou uma pessoa que gosta de contribuir para tornar o mundo um pouco melhor. Sei que parece altamente otimista, mas é a verdade. Incomoda-me muito a injustiça, o abuso de poder e a desigualdade de oportunidades e acessos.

Pessoalmente não me vejo como ativista. Não sei se me revejo na definição de ativista, até porque vejo que há várias definições ou nuances e não sei se correspondo à maioria delas.

O que é a Associação Quebrar o Silêncio e como começou?

AF: A Quebrar o Silêncio é a primeira e única associação portuguesa que presta apoio a homens e rapazes vítimas de violência sexual. Começámos em janeiro de 2017 e em seis anos de atividade, recebemos 594 pedidos de ajuda de homens e rapazes sobreviventes de abuso sexual. Os serviços de apoio são todos gratuitos e confidenciais e estão disponíveis para qualquer homem ou rapaz, independentemente da região onde vive, da idade, orientação sexual ou outra característica.

O nosso objetivo é ajudar estes homens a ultrapassar o impacto que o abuso teve nas suas vidas. O abuso sexual é uma experiência potencialmente traumática e este trauma pode ter consequências devastadoras na vida das vítimas. O nosso apoio é especializado em violência sexual, trauma e também na forma como os homens e rapazes lidam com este tipo de questões.

A ideia de criar a Quebrar o Silêncio parte da minha própria história pessoal. Quando tinha 10 anos fui abusado sexualmente por um amigo de família. Apesar de esta ser a minha história, ela é igual à de tantos outros homens e que sofrem em silêncio. Assim fundámos a associação para que estes homens tivessem um local seguro para falar das suas experiências e ultrapassar o abuso.

Porque este tabu/estigma em se falar em temas como violência sexual sobretudo no que diz respeito a violência sobre pessoas que se identificam com o género masculino?

AF: A violência sexual, por si só, é um tema tabu que quase não é falada, e o abuso sexual de homens tem os seus próprios estigmas. Ainda existe a crença errada de que os homens e rapazes não podem ser vítimas de violência sexual, o que não corresponde à verdade. A realidade é que um em cada seis homens é vítima de violência sexual. Ou seja, estes homens são os nossos amigos, irmãos, familiares, colegas, namorados, maridos, etc. Eles fazem parte das nossas vidas, não são estranhos. No entanto, ainda não há o reconhecimento social desta realidade e isto contribui para manter os homens no silêncio, isolados, a sofrer sozinhos, acreditando que são um caso único. Por isso é tão importante falarmos sobre violência sexual contra homens e rapazes, para que os sobreviventes saibam que não estão sozinhos, que não foram a exceção e que existe a Quebrar o Silêncio, um espaço seguro para que possam ultrapassar o impacto que o abuso teve nas suas vidas.

Também há muito a fazer quando falamos nas representações sociais da masculinidade. A sociedade continua a reproduzir ideias e estereótipos de que os homens não podem mostrar vulnerabilidade, emoções e que não podem chorar. Ou que os homens não podem procurar ajuda para resolver os seus problemas e que têm de o fazer sozinhos. São questões que acabam por se tornar obstáculos à procura de apoio.

A campanha “Terá Sido Abuso” que surgiu em Outubro é destinada a Homens que têm sexo com Homens. Como funciona?

AF: Sabemos que para um homem é difícil partilhar a sua história de abuso e também procurar apoio por recear não ser bem recebido, mas sabemos que os diferentes grupos têm características específicas que não podemos ignorar e que temos de prestar particular atenção. Por exemplo, os homens heterossexuais podem ter receio em procurar apoio porque podem acreditar erradamente que a violência sexual só acontece nas prisões ou entre homens gay.

A realidade é que há muitas formas de abuso sexual que passam despercebidas entre entre homens que têm sexo com homens (HSH), e por isso sentimos a necessidade de criar esta campanha, para que estes homens tenham acesso a informações que lhes permitam identificar situações de abuso que de outra forma podem passar despercebidas.

Felizmente isso tem acontecido. Ou seja, é este o feedback que temos recebido dos HSH. Estes homens passaram por casos de violência sexual em contextos que julgavam ser seguros, como por exemplo na intimidade, mas que não sabiam como identificar o abuso. Descreviam-no como “uma experiência sexual que correu mal” ou “dolorosa”, “estranha”, etc. O nosso objetivo é que ao ler o nosso guia, esse “desconforto” ou “mal-estar” pode ser resultado de terem sido vítimas de abuso sexual e que podem ter apoio para os ajudar a ultrapassar o impacto e as consequências do que aconteceu.

De que Falamos Quando Falamos de Violência Sexual Contra Crianças é o livro da sua autoria editado em 2022. Como surgiu este projecto que intitula de guia e em que consiste?

AF: Ao longo de vários anos a realizar ações de formação ou de sensibilização, nomeadamente para profissionais da área, fui observando que muitas das perguntas que colocavam ia no sentido de saberem o que poderiam fazer a nível da prevenção. Ou seja, até para estes e estas profissionais havia imensa desinformação relativamente ao abuso sexual de crianças, nomeadamente como os abusadores chegam às crianças e as silenciam, consequências do abuso, etc.

Assim surgiu a necessidade de criar este livro. É um recurso para cuidadores que queiram saber mais sobre esta realidade e promover a prevenção. Contém uma parte introdutória de exploração de conceitos, pois antes de chegarmos às orientações e estratégias, é fundamental ter conhecimento do problema. A segunda parte é dedicada àquilo que podem fazer no quotidiano para promover a prevenção da violência sexual contra crianças.

O que difere este livro de outros materiais de prevenção primária é que o foco da responsabilização incide nos pais, mães e pessoas cuidadoras. São os adultos quem deve garantir a segurança da criança.

Tendo em conta o panorama dos direitos LGBTI+ em Portugal o que acha que ainda falta fazer?

AF: Não trabalho na área dos direitos humanos LGBTI+ por isso não sou, de todo, a pessoa mais indicada para fazer essa análise. O que posso dizer é que parece faltar empatia por parte das pessoas em compreender a falta de oportunidades e de direitos de determinados grupos. Parece que atualmente as opiniões são polarizadas e que não há muito espaço para diálogo. Isto é preocupante.

Que projectos tem para o futuro? 

AF: Em breve a Quebrar o Silêncio vai publicar um guia dirigido para os órgãos da comunicação social. A ideia é fornecer um conjunto de orientações que auxiliem a escrita de notícias e também a entrevistar vítimas de violência sexual.

Apesar de a violência sexual ser um crime que é comummente noticiada nos diferentes órgãos da comunicação social, observamos a ausência de uma linha orientadora que contribua para uma terminologia rigorosa e que possibilite a informação correta do público sobre estas matérias. Para nós é fundamental que ao reportar um crime de violência sexual, o mesmo seja integrado num contexto mais amplo, consciencializando o público para o facto de não ser um caso único ou uma situação rara.

Neste sentido, o objetivo deste guia é fornecer um conjunto de orientações e reflexões, para que possa ser um recurso para a escrita de notícias e de outros conteúdos relacionados com violência sexual.

Associação Quebrar o Silêncio – Apoio especializado para homens e rapazes vítimas de violência sexual.

Linha de apoio 910 846 589

Nota: Entrevista publicada a 10 de Fevereiro de 2023 no site antigo

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