ARTIGOS – ARQUIVO 2020

Tiago e o arco-irís!

20 de Dezembro de 2020

“A melhor arma que temos é a visibilidade”. Tiago Castro

Tiago Castro é psicólogo na Associação Plano i e activista. Já nos cruzámos com ele algumas vezes enquanto representante da It Gets Better Portugal e tem sempre um sorriso no rosto. Lançámos o desafio de ser a cara deste mês para a nossa rubrica de entrevistas a activistas para ficarmos a saber um pouco mais sobre o Tiago e o trabalho que realiza.

Quem é o Tiago Castro além de activista pelos direitos LGBTI+?

Tiago: Antes de mais agradecer o vosso amável convite para esta entrevista e dar os parabéns por todo o trabalho que desenvolvem. Vejo-me a mim como um homem sonhador que nunca deixa de acreditar que os nossos desejos e objetivos se realizam quando lutamos por eles. Gosto de aproveitar os pequenos pormenores da vida, e encontro a felicidade nessas pequenas coisas. Nas relações com as outras pessoas, gosto particularmente de todas aquelas que me fazem crescer como ser humano e que me ensinam todos os dias a ser uma pessoa melhor.

Como foi o teu percurso enquanto activista? 

Tiago: Sempre me vi como alguém que não conseguia ficar indiferente face à injustiça e ao preconceito. Acredito que somos sempre mais felizes quando as pessoas à nossa volta também o são, e que todos e todas podemos fazer a diferença em pequenos gestos da nossa vida. As primeiras pessoas LGBTI+ que conheci ajudaram-me a conhecer parte da pessoa que sou hoje, e todo o apoio que recebi levou-me a sentir que também poderia dar algo em troca. Considero que uma das melhores sensações da vida é quando conseguimos ajudar uma outra pessoa a ser mais feliz, e quando isso acontece a fazermos aquilo que gostamos ainda mais enriquecedor se torna.

Podes nos falar da tua experiência enquanto representante do It Gets Better Portugal?

Tiago: O projeto It Gets Better conquistou-me desde o primeiro minuto por marcar pela diferença. O seu objetivo não é pintar o mundo todo de “cor de rosa”, até porque queremos que ele seja às cores. Com isto quero dizer que a nossa missão não é “esconder” o preconceito e/ou a discriminação que ainda existe face às pessoas LGBTI+. Contudo, acreditamos que os/as jovens LGBTI+ para quem falamos, precisam de referências positivas, precisam que alguém lhes diga que não existe nada de errado com eles/elas e que têm exatamente o mesmo potencial de felicidade e realização de qualquer outra pessoa. Por ser um projeto inovador neste âmbito, agarrei desde o início a oportunidade de me juntar a ele. E o feedback das pessoas não poderia ser melhor. Quando sabemos que um pequeno testemunho ou história que partilhámos fez a diferença em algum momento na vida de alguém, isso enche-nos de orgulho e faz com que continuemos a acreditar cada vez mais na beleza deste projeto.

Fala-nos um pouco sobre o desafio que é conseguir criar/realizar projetos sobre questões LGBTI+ em Portugal?

Tiago: Portugal tem assistido ao longo dos últimos anos a vários avanços legais no que diz respeito ao reconhecimento de direitos das pessoas LGBTI+. Associado a estes avanços têm surgido várias oportunidades para que diversos projetos sejam reconhecidos e possam ver a luz do dia. Contudo, sabemos que ainda há um longo caminho a percorrer, e aquilo que hoje assumimos como garantido, pode não o ser amanhã. Por isso não podemos baixar os braços, e o papel de cada associação ou projeto nas áreas dos direitos humanos, do combate ao preconceito e à invisibilidade das pessoas LGBTI+, é sem dúvida essencial neste caminho que devemos continuar a percorrer.

Podes nos falar sobre a Associação Plano i e o trabalho que realizas?

Tiago: A Associação Plano i, é uma associação não governamental com estatuto de IPSS, que procura dar respostas concretas a um amplo conjunto de questões sociais atuais, nomeadamente a desigualdade, a discriminação, a violência, a exclusão e a pobreza. Atualmente trabalho como psicólogo no Centro Gis, projeto da Associação Plano i. O Centro Gis é um Centro de respostas às populações LGBTI, que integra a rede nacional de apoio a vítimas de violência doméstica como estrutura de atendimento. Para além do gabinete de apoio a vítimas de violência doméstica e de género, o Centro Gis contempla ainda varias valências como apoio psicológico, apoio médico e jurídico. Existe ainda um departamento de formatação e capacitação de públicos estratégicos, essencial na intervenção com populações LGBTI+.

A pandemia que nos assola trouxe mudanças para todas as pessoas. Quais as consequências que têm verificado no vosso trabalho?

Tiago: A pandemia veio trazer-nos desafios acrescidos no trabalho com as pessoas LGBTI+. Todos e todas nós temos a consciência que a invisibilidade continua a ser um dos principais fatores de discriminação, seja dentro do núcleo familiar, nos locais de trabalho, ou na sociedade em geral. A codiv-19 veio infelizmente acentuar um pouco esta invisibilidade, e consequentemente a violência existente. Muitas pessoas tiveram que voltar para dentro de casa, que infelizmente é muitas vezes um espaço no qual não podem, ou não se sentem à vontade, para serem elas mesmas. A necessidade de modelos positivos é constante ao longo da nossa vida e por isso, precisamos todos e todas de não nos esquecermos do quão é importante, mesmo que não possamos estar juntos e juntas fisicamente, de continuar a passar a mensagem de que continuamos cá, e que sempre que nos procurarem vão encontrar alguém com quem possam falar sem medos ou julgamentos.

Que projetos tens para o futuro?

Tiago: Trabalhar com pessoas e para pessoas é um grande desafio, mas ao mesmo tempo muito enriquecedor. Há ainda muito trabalho que precisa de ser feito, e espero que o futuro me permita continuar a desenvolver o mesmo. Acabamos de lançar com o It Gets Better Portugal um novo e-book intitulado Come to the rainbow school: guia para professor@s inclusiv@s. Gostava muito de continuar a desenvolver um trabalho junto da comunidade escolar nesta área no futuro, pois acredito que a educação é uma das melhores formas de combatermos o preconceito. Nesta fase de pandemia que atravessamos, o futuro é ainda incerto, contudo não tenho dúvidas que todos e todas em conjunto seremos sempre mais fortes.

Diversidade e Política

Iara Lugatte

10 de Dezembro de 2020

O artigo do mês de dezembro será um pouco diferente da nossa proposta inicial, a de abordarmos temas exclusivos sobre a sexualidade, mas também não fugiremos a ele. Gostaria de propor uma reflexão acerca dos últimos acontecimentos políticos nas Américas, a do Norte e a do Sul, nomeadamente, EUA e Brasil.

Nos EUA começa com a vitória de Joe Biden nos Estados Unidos, destronando Trump e a sua empáfia; depois, a escolha de uma mulher como vice-presidente Kamala Harris, advogada, e filha de uma cientista indiana e de um professor universitário jamaicano, resultando dessa mistura étnica uma mulher inteligente, culta e de boa formação.

Para além de Kamala, Biden contará com a presença de Shawn Skelly, uma mulher trans e veterana da Marinha. A escolha de Skelly sinaliza uma maior abertura da Casa Branca à população LGBTI+ no país, bem como, a reversão de políticas controversas do ex-presidente Donald Trump dentro das Forças Armadas. Significativo, pois.

E, não é a primeira vez que Skelly participará do governo norte-americano. Em 2013 Skelly integrou a equipe do ex-presidente Barack Obama como participante da Comissão Nacional do Exército e Serviço Público. Isso é um grande passo na política de qualquer país.

No Brasil com as eleições municipais que aconteceram no domingo, 15 de novembro, Dia da Proclamação da República, cujo resultado nos apresenta uma fresta de luz, um caminho possível para uma mudança comportamental em relação a diversidade.

Depois dos momentos sombrios em que nos afetou a todos nos governos Trump, e ainda, no governo Bolsonaro, no que tange ao preconceito e a exclusão das pessoas LGBTI+ no cenário político e social que não têm uma voz representativa para alterar a realidade atual dessas pessoas, eis que surge um “farol” que poderá iluminar as mentes dessa gente que comanda as várias esferas políticas mundo fora.

Mas, um avanço significativo aconteceu nas últimas eleições municipais em todo o país com as mulheres trans eleitas para a Câmara dos Vereadores em várias capitais brasileiras, até mesmo num estado mais conservador como Porto Alegre. No Rio Grande e em São Borja, região sul do país, comemoram a eleição de Regininha e Lins Robalo, respectivamente. Em Porto Alegre a eleita foi Natasha Ferreira como suplente.

Na Câmara Municipal de São Paulo temos Érika Hilton, 27 anos, mulher trans, negra, foi a mais votada e eleita vereadora. Ainda na capital paulista Thamy Miranda, homem trans, foi o mais votado para representar os homens trans. Em Belo Horizonte, a vereadora eleita, e mais votada, foi Duda Salabert, Professora há 20 anos, mulher trans.

Niterói (RJ) elege Benny Briolly, mulher negra trans. Benny comemora a vitória no Twitter com a frase “Vai ter mulher preta, travesti na Câmara de Niterói”. Mas não fica por aí, pois Benny auto-define-se como “Mulher preta, travesti, favelada, feminista, ecossocialista, do movimento negro LGBTI+, militante de direitos humanos…”.

Belém do Pará elegeu Beatriz Caminha, 21 anos, estudante de arquitetura e urbanismo, bissexual e feminista. A sua prioridade é pensar a cidade, o saneamento básico e a habitação, prioridades das políticas públicas como ponto de partida para diminuir as desigualdades.

Dani Portela, advogada negra anti-racista, candidata mais votada e eleita vereadora no Recife, tornando-se, assim, a segunda mulher a ocupar o cargo, sucedendo a Michele Collins, eleita em 2016. Comemorando a sua vitória, disse: “Somos sub-representadas, as mulheres negras não chegam a 2% desses cargos. Então, eu entendo que estar no lugar da mais votada, é uma retoma dos territórios políticos.”

Concluindo, apesar de não serem maioria no cenário político nacional, essas eleições municipais abririam a porta à diversidade, foi como tirar a areia dos olhos, e nos apresentou candidatas mulheres trans, mulheres negras, mulheres trans negras, mulheres anti-racistas, mulheres de favelas, vereadoras eleitas…MULHERES.

A exemplo da Viúva de Marielle Franco, Mónica Benício chega à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro com 22 mil votos. Parece pouco, mas numa sociedade machista e preconceituosa, onde impera um poder político xenófobo, sexista, falocêntrico, é, por certo um avanço. E, mais do que o resultado das eleições municipais mostraram em 2020, estou certa que uma das grandes vencedoras foi a diversidade, um marco importante para a população LGBTQI+.

E termino com um recado da vereadora Duda Salabert, mulher trans:

 “É uma vitória dos direitos humanos, porque eu faço parte de um grupo que foi historicamente excluído e marginalizado na sociedade, que é o grupo das pessoas travestis e transexuais. Mas é, sobretudo, uma vitória da educação”. Duda Salabert.

Alex, o super herói Trans!

20 de Novembro de 2020

“Nem todas as pessoas trans sabem que o são desde a infância. Há quem saiba desde cedo, e há quem só descubra mais tarde. Em ambos os casos a identidade da pessoa continua a ser válida, não existindo uma “idade certa” para se descobrir que se é trans. ” in TransCenas

Alex Pacheco é uma das pessoas responsáveis pelo projecto TransCenas, um projecto com temática Trans que ficaremos a conhecer melhor ao longo da entrevista. É activista e corre as marchas LGBTI+ de Portugal em formato de super herói trans, mas o resto será Alex a contar.

Quem é Alex Pacheco além de activista pelos direitos LGBTI+?

Alex: Sempre que tento responder a esta pergunta sinto que o resultado parece saído de um perfil do tinder sem grande imaginação.  Sou uma série de coisas, mas prefiro que as pessoas descubram isso por elas próprias, porque as minhas auto-descrições não me costumam favorecer grande coisa.

Podes contar um pouco o teu percurso enquanto activista? 

Alex: Comecei a dar os primeiros passos no ativismo junto da rede ex aequo, pouco tempo depois de descobrir que era bissexual. Na altura procurei a associação porque precisava de conhecer outras pessoas bi, e LGBTI+ em geral. Estava à procura de apoio e de comunidade, e encontrei-os na rede ex aequo. Com o tempo comecei a integrar-me cada vez mais no trabalho da associação, e isso foi-me abrindo portas para conhecer e colaborar com outros activistas e projectos. Tem sido um percurso bastante enriquecedor, tenho o privilégio de poder conhecer e colaborar com pessoas de variadas áreas, com diferentes backgrounds, percursos e perspetivas. Entretanto, quando descobri que era trans, comecei a focar o meu trabalho mais nessa área em particular. Não significa isto que só trabalhava junto de organizações ou pessoas trans (embora também o faça); o que eu tento fazer é trazer as questões e vozes trans para o resto das discussões nos espaços LGBTI+, começar a ocupar mais espaço e a aumentar a nossa visibilidade. Hoje em dia ainda colaboro com a rede ex aequo, mas o meu trabalho tem-se focado mais no coletivo Somos Blergh, um coletivo ativista interseccional, também conhecido como o Coletivo da Batata. Em simultâneo, mantenho o site do TransCenas e tenho andado a trabalhar no sentido de ampliar o projecto.

Podes nos explicar como surgiu o projecto TransCenas e em que consiste?

Alex: O projeto surgiu de uma necessidade que senti ao longo da maior parte do meu processo de transição. Mesmo com o poder da internet, é ainda muito difícil encontrar informação fidedigna e atualizada sobre assuntos relevantes para a população trans em Portugal. Isto é algo que não se limita a informação sobre médicos, cirurgias ou consultas, mas também a informação sobre comunidades de pessoas trans e redes de apoio. A informação por vezes até existe, mas está espalhada, ou escondida por trás de fóruns sem actividade, mailing lists antigas, ou grupos secretos no Facebook. Portanto, o objetivo do TransCenas é ser um local online facilmente acessível e onde esteja disponível toda a informação que for possível reunir. O site foi construído para ser de fácil leitura e navegação, de forma a que as pessoas possam encontrar o que procuram sem ter de andar a escavar pelos confins da internet. Numa fase posterior (mas já em andamento) o projeto pretende juntar mais pessoas trans e a partir daí organizarmo-nos e expandir o projeto.

Consideras que ainda existe uma grande lacuna de informação relativamente às questões Trans em Portugal? 

Alex: A resposta à questão anterior quase que responde a esta. Sim, acho que ainda existe muita falta de informação. Uma pessoa trans muitas vezes não sabe onde é que se pode dirigir para iniciar ou continuar o seu processo clínico; ou não sabe qual é o processo administrativo para mudar de nome; ou não conhece mais ninguém trans com quem partilhar experiências ou dúvidas. E muitas vezes essa informação até existe, mas é de difícil acesso a não ser que a pessoa já conheça o trabalho de algumas associações, ou conheça alguém que por acaso esteja dentro de alguma comunidade online. A informação muitas vezes ainda passa “de boca em boca”, não existindo de forma organizada e fácil de consultar. Portanto, não só é a informação existente insuficiente, como a que há muitas vezes é de difícil acesso.

Como achas que o Decreto de Lei sobre o Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa veio mudar a vida das pessoas Trans na prática?

Alex: A nova lei veio garantir que as pessoas trans têm direito ao seu nome sem interferências de terceiros. Isto significa que já não temos de esperar até que os nossos médicos estejam convencidos que somos mesmo quem sabemos ser. Podemos até nem ter de interagir com a parte clínica do processo se não a desejarmos. No fundo, temos controlo sobre essa parte, sobre a mudança de nome, coisa que não tínhamos antes. O nome que consta nos nossos documentos pode fazer a diferença no momento de encontrar emprego, arrendar uma casa, interagir com agentes de autoridade, etc. As nossas vidas, as nossas oportunidades de emprego, ou de educação, ou alojamento, tudo isso pode estar condicionado pelo nome que temos nos documentos. Havia pessoas que viam as suas vidas paradas enquanto os médicos não lhes davam permissão para mudar de nome. Portanto, ter controlo sobre o momento em que decidimos mudar de nome é algo importantíssimo. Outro setor da população que pode ver melhorias consideráveis são os jovens e crianças trans. A lei diz que se deve garantir a integração e não-discriminação de alunos trans nas escolas, existindo até um despacho publicado posteriormente que define exatamente que medidas é que as escolas podem adotar para ajudar a integrar os alunos trans e diminuir o risco destes alunos serem alvos de bullying e violência transfóbica, não só por parte dos colegas, como também dos docentes e pessoal auxiliar. É um passo certo para garantir o bem-estar das crianças e jovens trans e para ajudar a garantir o nosso direito à educação.

O que ainda falta fazer em termos das questões Trans em Portugal? 

Alex: Muita coisa! Falta reforçar o Sistema Nacional de Saúde com mais equipas capazes de nos dar o apoio clínico que precisamos, e isto inclui não só existirem mais equipas em mais áreas do país (incluindo nas ilhas), mas também melhorar a qualidade das equipas, garantir que seguem as melhores práticas clínicas em contexto de transição, e afastar os médicos que projetem transfobia na sua prática clínica. Falta reconhecer a existência de géneros fora do binário, permitir às pessoas não-binárias mudarem de nome e marcador de sexo (ou, melhor ainda, remover a referência ao sexo nos documentos) e acabar com as restrições nos nomes conforme o sexo registado da pessoa. Falta implementar um plano de educação sexual decente nas escolas, que seja inclusivo das questões trans. Aliás, em termos de educação pode-se sempre dizer que está em falta: falta educar as forças de segurança, os médicos, os professores, o pessoal administrativo, enfim, a população em geral. Isto seriam alguns dos problemas mais imediatos e mais concretos que ainda estão por resolver. A longo prazo, há sempre trabalho a fazer para o desmantelamento das estruturas que sustentam a transfobia, transmisoginia, binarismo de género, e outras violências de género. Esse trabalho tem de continuar a ser feito em coordenação com outras causas, nomeadamente com o feminismo e com o anticapitalismo.

Que projectos tens para o futuro?

Alex: Por enquanto o meu foco é o de expandir o TransCenas. O projeto já está a cumprir o seu objetivo primário, que é o de ser uma fonte de informação para as pessoas trans em Portugal. O próximo passo será continuar a adicionar conteúdo ao site mas, ao mesmo tempo, começar a trabalhar para além dele. O projeto foi iniciado por mim e, durante muito tempo, era apenas eu que o mantinha. Hoje em dia já não é o caso, havendo mais pessoas envolvidas no projeto. Estamos ainda numa fase inicial de organização, mas já temos pessoas com vontade de trabalhar e com ideias para lançar o TransCenas para mais longe. Fiquem atentes, que em breve-ish poderão surgir novidades!

Conto Clínico

Iara Lugatte

06 de Novembro de 2020

Sou um rapaz de 21 anos, venho de uma família liberal, e sou o segundo filho de pais amorosos, compreensivos, inteligentes e bem formados. Apesar de ter nascido em berço esplêndido e liberal, onde o respeito a todas as diferenças era um valor fundamental nas relações humanas e familiares, eu não me sentia bem comigo mesmo. O sentimento de menos valia em relação a minha pessoa foi crescendo dentro de mim, cada dia mais sentia-me um apêndice social. Comecei a isolar-me, acompanhado pelo meu silêncio ensurdecedor, sentia uma grande dor da dor que sentia.

Os meus pais começaram a perceber o meu isolamento e, preocupados, intervinham a todo momento, o que foi crescendo dentro de mim uma força contrária em relação ao comportamento deles. Comecei, então, a ser agressivo com os meus pais, a afasta-los de mim, e ao mesmo tempo que me sentia uma vítima do mundo, também sentia culpa. Além disso, a minha relação com o espelho era demasiadamente conflituosa. Sentia-me feio, desengonçado, até um pouco diferente dos meus amigos, principalmente quando o tema sexualidade era abordado em grupo.

Os meus amigos já namoravam, conversavam sobre meninas, sobre a atração que sentiam, ainda que não tivessem nada de íntimo com elas. Eu não tinha nada para contar, mas algo dizia-me que essa não era a minha realidade, eu não sentia nenhuma atração pelas meninas, nem por meninos. Estranho!

Vem chegando as férias, e os meus pais continuavam preocupados com o meu estado, e por conta do meu comportamento que oscilava entre a raiva, inadequação social e choro constante, acharam por bem oferecer-me uma viagem de férias para a Europa, coisa que me fez refletir, se eu merecia mesmo esse presente. Mas aceitei, e viajei para 3 países: França, Itália e Espanha. Em Paris, conheci um rapaz da mesma idade, e fizemos juntos toda a viagem até a Espanha. Ficamos amigos, muito amigos, e descobri que tínhamos muitas afinidades, musicais, literárias e humanas, parecia que nos conhecíamos há muitos anos. Foi o melhor período da minha vida, sem a menor dúvida. Separamo-nos em Espanha, ele voltou para o seu país e eu para o meu. Durante a volta, revi toda a viagem, e percebi que o meu amigo era a pessoa que eu gostaria de ter ao meu lado como companheiro na vida, estava apaixonado. Mas, ao contrário do que supõe-se, esses sentimentos deixavam-me desconfortável, envergonhado, constrangido, seria eu homossexual? Não, eu não queria ser rotulado assim, não, eu não levaria essa “amizade” adiante. Era preciso cortar laços.

Porém, antes de tomar qualquer decisão, eu precisava falar com os meus pais sobre essa auto-descoberta. E, após o jantar, numa noite tranquila, relatei tudo sobre as minhas dúvidas amorosas e sexuais. Eles acolheram-me, o que não foi surpresa para mim, e sem o menor traço de pré-julgamento, os meus pais disseram-me que me amavam, e que nada abalaria o amor que eles sentiam, e que o mais importante para eles, é que eu fosse feliz com a pessoa que eu também amasse. Postura perfeita de pais inteligentes e afetivos.

Mas, posso afirmar que o meu incômodo continuava, sentia uma grande estranheza dentro de mim, e a primeira coisa que pensei foi “não, eu não posso, não devo, preciso tentar aproximar-me intimamente de uma menina, preciso saber se sou gay ou não”.

Assim, decidi abortar os meus sentimentos pelo meu amigo e, constrangido, escrevi-lhe uma carta contando tudo o que sentia, e pondo um ponto final à nossa amizade.

Entretanto, quis a vida, que o meu amigo respondesse em tempo breve, confessando que passava-se o mesmo com ele, também apaixonara-se por mim. Mas ao contrário de mim, ele aceitou bem os seus sentimentos, ainda que tenha nascido numa família provinciana e conservadora. Essa revelação deixou-me assustado. Já não sabia o que fazer, uma vez que os nossos sentimentos eram  correspondidos.

Depois de muito refletir, resolvi pedir ajuda a um profissional psi para definir o rumo que deveria dar a minha vida. Diante do meu relato ao psicólogo que ouvia-me gentilmente, e ao finalizar a minha pequena história, ele falou algo que mudou tudo na minha vida: “a sua relutância em aceitar-se como é, leva-o a sentir raiva, o que revela a sua impotência diante de uma potência que é o seu desejo, o preconceito é teu”.

Dia Mundial da Saúde Mental

Iara Lugatte

10 de Outubro de 2020

Há 28 anos, no dia 10 de outubro de 1992, foi instituído o Dia Mundial da Saúde Mental pela Federação Mundial de Saúde Mental.

Atualmente, o que constatamos é que ainda há um árduo caminho a percorrer em relação aos problemas relacionados com a saúde mental, embora seja alardeado como prioridade pela OMS – Organização Mundial de Saúde devido aos inúmeros casos de transtorno mental incapacitantes. Mas na realidade, o investimento que se faz nessa área ainda é precário. Além disso, ainda nos deparamos com o preconceito em relação a doença mental, mesmo que esta seja cada vez mais evidente na nossa sociedade.

O que poucos sabem é que os transtornos mentais estão presentes na história da humanidade desde sempre. Temos conhecimento de muitos relatos de pessoas que vivenciaram quadros depressivos, ideação suicida etc., é só ler alguns autores que se debruçaram sobre o tema, a exemplo de Michel Foucault.

Para além disso, sabemos que a loucura e a arte também caminham juntas. A arte como sublimação da doença. A exemplo de alguns artistas que tiveram as suas vidas roubadas dentro de um hospital psiquiátrico, depois de muito criarem, temos Arthur Bispo do Rosário, Antonin Artaud, Camille Claudel, Nijinsky e Van Gogh, entre outros. Na verdade, há uma linha tênue entre a loucura e a arte, seja ela – a loucura – de forma profunda ou não. Afinal, genialidade e loucura andam juntas, é como se os artistas – seres especiais – tivessem que se afastar da realidade para o universo criativo, abstraindo-se da lógica racional para mergulharem no processo da criação, sem censura, sem lei, sem impedimento sem Superego, numa espécie de catarse.

Logo, podemos inferir que há muito tempo o tratamento em saúde mental não é, e nem deve ser, somente farmacológico, mas sim por uma equipa multiprofissional, tais como: Psicólogos, Terapeutas da Fala, Nutricionistas, Assistentes Sociais, Enfermeiros, etc., e a ARTE como forma de expressão do mundo interno de cada um. A doença mental afeta muitas outras áreas, causando grande sofrimento ao paciente e a família. O importante é se trabalhar visando diminuir o sofrimento da pessoa, e resgatar a qualidade de vida do paciente, mas sem a ARTE, a vida fica pequena e o tratamento capenga.

Finalmente, acredito que o maior entrave para o tratamento do paciente é o preconceito, seja da família, seja dele próprio. Sem pedir ajuda não se avança para o equilíbrio da doença, e para isso, é importante saber que a doença mental é como qualquer outra doença, precisa ser tratada.

A repulsa à diversidade sexual, é uma repulsa à própria sexualidade!

Iara Lugatte

24 Setembro de 2020

Este texto da psicanalista e escritora Ana Suy vem acrescentar à nossa maneira de pensar a causa LGBTI+ um novo olhar, não só sobre a homossexualidade, bem como, sobre a heterossexualidade.

Muito se discute acerca dessa temática nas mais variadas linhas do pensamento, entretanto, é a psicanálise que mais esclarece e cutuca – ainda que, não raro, combatida, e até negada – o que incomoda o outro quando a questão LGBTI+ esbarra na sua própria sexualidade e, roça os seus medos mais secretos e, muitas vezes, desmontando tudo que ele julgava inabalável, inexorável…

A psicanálise não normatiza a sexualidade, não há uma normalidade. Importante saber que a psicanálise tem uma importante função social e humana, sendo ela uma “ferramenta” demolidora de uma moralidade sexual definida e alardeada pela sociedade de forma desprezível. Dito isso, deixo-vos um pequeno trecho para a vossa reflexão: “A necessidade sexual é importante para unir os Homens, à semelhança do que, pelo contrário, acontece com as exigências da conversa, a satisfação sexual é, antes do mais, um assunto privado, individual”. Totem e Tabu (1912-1913) – Sigmund Freud.

Iara Lugatte, psicoterapeuta e psicanalista

“No sentido psicanalítico, portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma atração de base química”. Sigmund Freud.

Gosto muito desse comentário do Freud numa nota de rodapé do texto “Três ensaios sobre a sexualidade” (de 1905). Ao invés de normalizar outras saídas para a sexualidade para além da heterossexualidade, ele subverte a questão e problematiza a própria heterossexualidade.

A base da psicanálise freudiana (seria um pleonasmo?) atual repousa nesse ponto: nada é óbvio, esperado ou normal.

Cada um de nós dá o contorno possível à pulsão, que não tem objeto que a satisfaça em definitivo.

Também Freud escreveu: “A vida sexual do homem civilizado está mesmo gravemente prejudicada, às vezes parece uma função que se acha em processo involutivo, como nossos dentes e nossos cabelos enquanto órgãos.” (O mal-estar na civilização, 1930)

Nossa tendência a andar pra trás é um dos maiores problemas da humanidade – a isso Freud chamou de pulsão de morte.

A repulsa à diversidade sexual, portanto, é uma repulsa à própria sexualidade! Temos horror à pulsão, que denuncia nossa errância na vida humana, (um pouco) salva pelo desejo.

Ana Suy, psicanalista e escritora

Alexa Santos e a luta pela transformação de atitudes

31 Agosto de 2020

Conhecemos há já algum tempo o trabalho de Alexa Santos e no início do ano tivemos o prazer de conseguir que estivesse presencialmente numa das nossas sessões Já Falavas – Conversas com Activistas. É uma das pessoas parceiras no projecto “maravilhoso” que é o Descentracenas e alguém que faz activismo enquanto respira, por isso achamos que está na hora de desvendarmos mais sobre o seu trabalho.

Quem é Alexa Santos além de activista pelos direitos LGBTI+?

Alexa: É filha de uma imigrante cabo-verdiana, é trigémea, nascida no sul de Portugal no dia em que é assinalado o dia Internacional da Mulher. É formada em Serviço Social há 15 anos e tem uma paixão por educação não formal e o trabalho com jovens. Para além disso sou também ativista anti-racista e feminista interseccional. Faço parte do INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal e uma das coisas que mais gosto é de descobrir formas de ter conversas complicadas de maneiras simples. 

Podes contar um pouco o teu percurso enquanto activista? 

Alexa: Para mim ser lésbica era algo inconcebível. Ser uma mulher que tem relações com mulheres não era possível. Também nunca tinha questionado de forma consciente a minha expressão de género ou mesmo a minha identidade. Foi quando me apaixonei por uma mulher que percebi que o mundo era feito de muitas mais coisas do que as que me tinham dito. Ao mesmo tempo que comecei o meu percurso pessoal de descoberta começou também o meu caminho no ativismo. Em 2011 integrei o grupo de pessoas que faz o Projeto Educação na rede ex aequo e desde então nunca mais parei. Fiz parte da direção da rede ex aequo em três mandatos diferentes começando em 2012, depois 2014 e 2015 que foi o ano em que me mudei para o Reino Unido onde fiz um mestrado na área do Género, Sexualidade e Teoria Queer. Nesta altura percebi que quem eu sou não poderia ser distinto do meu percurso como ativista LGBTI+ tanto a nível pessoal como profissional por isso a minha tese debruçou-se sobre o trabalho de assistentes sociais com crianças e jovens LGBTIQ+ em Portugal e ao mesmo tempo começavam as primeiras ideias para o que depois se tornou no Queeringstyle.

Tiveste durante muito tempo um site denominado Queeringstyle podes nos falar um pouco sobre este projecto?

Alexa: O Queeringstyle começou por ser a minha casa longe de casa através do Tumblr. No blog documentei a minha jornada de exploração por diferentes possibilidades de estilo e moda com o que me sentia mais confortável. Por um lado estava a fazer um percurso através do meu corpo, a torná-lo visível, uma ferramenta de ativismo enquanto me afastava do estilo feminino e da feminilidade por outro consegui encontrar novas formas de existência com que me sentia mais feliz, mais confiante, mais eu mesma dando origem a uma expressão de género fluida/queer/andrógina. Na volta a Portugal do Reino Unido percebi que talvez fosse importante para outras pessoas terem mais referências de pessoas que não respeitavam as regras de género, do estilo e que utilizavam a roupa como veículo para essa transgressão. Foi assim que o Queeringstyle nasceu. Era uma plataforma colaborativa em que quem se identificasse podia contribuir com textos, artigos, poemas, entrevista, eventos e tudo que fosse queer, fúfico, transfeminista no sentido de se tornar também casa para outras pessoas.

E porque sabemos que não és activista de uma só luta, podes nos falar da tua experiência na direcção do INMUNE?

Alexa: O INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal surge na minha vida através da deputada Joacine Katar Moreira que foi a sua idealizadora e co-fundadora. Surge como uma oportunidade de contribuir mais ativamente para a luta anti-racista e também para em conjunto com outras mulheres fazer um trabalho feminista com foco em questões de racismo, discriminação racial, com a interseccionalidade enquanto ferramenta de mudança social e lente para olhar, construir e desconstruir o mundo. É uma experiência muito rica que me fez conhecer grandes mulheres e que me faz trabalhar com pessoas que me ensinam muito mas que me ajudam também a ser mais igual a mim mesma. 

Sabemos que fazes parte recentemente da direcção do Clube Safo, associação que estava um pouco na sombra nos últimos anos, como é a experiência até agora, sobretudo quando ganham vida numa altura de pandemia?

Alexa: É uma experiência bastante desafiadora e ao mesmo tempo muito animadora. Em vários sentidos. Somos um grupo de mulheres que se conhece em alguns casos há bastante pouco tempo e estamos um pouco por todo o país a construir oportunidades de visibilização da luta lésbica, de mulheres queer, mulheres que têm relações com outras mulheres independente das categorias que utilizam para se definir e ao mesmo tempo tendo em conta toda a diversidade de pessoas e categorias que existem. O facto de estarmos a fazer ativismo enquanto estamos também a sobrevier a uma pandemia torna tudo ainda mais complexo mas o facto do Clube Safo nunca ter estado realmente na sombra e de nós hoje podermos estar aqui a falar do mesmo e a continuar o seu legado demonstra exatamente como é pertinente continuarmos a ter estas conversas, a trazer estes assuntos e isso também nos dá força para continuar o trabalho.

Neste momento a tua vida passa também pelo projecto DaC – Diversity and Childhood. Podes nos explicar resumidamente em que consiste este projecto?

Alexa: O Diversity and Childhood (DAC): transformar atitudes face à diversidade de género na infância no contexto europeu, “tem o duplo objetivo de prevenir e combater a discriminação e a violência vivida por crianças e jovens LGBTI+”. É um estudo acolhido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, coordenado pela Ana Cristina Santos e a Mafalda Esteves, financiado pela União Europeia. Portugal é um dos 9 países participantes. Recentemente divulgámos os resultados preliminares do relatório nacional que mostra haver falta de formação e informação na generalidade dos profissionais nas áreas da Educação, Saúde, Apoio a famílias, Espaços Públicos (que incluem as forças de segurança pública) e Média (em particular jornalistas).

O estudo DAC assenta sobre o facto de que muitas vezes crianças que não se identificam com a binaridade de género (ser menino ou menina) seja por não se identificarem com o género que lhes é atribuído à nascença, seja por não se identificarem com um género só ou por outra forma de sair das normas binárias de género, são tidas como doentes, são vítimas de violência e discriminação e muitas vezes encontram mais contratempos que apoio quando procuram ajuda. Temos visto o surgimento tanto de associações como a AMPLOS, como de profissionais em várias áreas a fazerem um trabalho cada vez mais visível para que possamos criar condições de acolhimento e segurança para estas crianças mas ainda é insuficiente e pouco descentralizado.

Que projectos tens para o futuro?

Alexa: Para o futuro espero continuar a ter energia para estes vários projetos, continuar a ter algum impacto na vida das pessoas à minha volta para que possamos abrir ainda mas espaço para diálogos sobre o racismo, sexualidade, identidade e expressão de género sempre com um cunho feminista interseccional, nunca esquecendo questões de classe, geografia, capacitismo e situação específica. Espero ainda conseguir ver a diversidade a tornar-se algo a ser verdadeiramente celebrada pelos profissionais da minha área profissional e contribuir para uma prática afirmativa para pessoas LGBTI+ em Portugal.

Assinar Petição – Petição pela Ilegalização das Terapias de conversão em Portugal 

Links para consulta

Projecto DAC – Diversity and Childhood

Resultados Preliminares do Relatório Nacional (Diversidade e Infância – quem protege a criança com diversidade de género)

Amplos – Associação de Mães e Pais pela liberdade de orientação sexual e identidade de género

A sexualidade traduzida pelo mito do Andrógino (parte II)

Nuno Ferreira

16 de Julho de 2020

Segundo Platão:

“Quando a forma natural se encontrou dividida em duas, cada metade, com saudades da sua própria metade, se lhe reunia; e estendendo as mãos em volta, enlaçadas uma na outra, não mais aspiravam do que fundir-se num só ser. Começaram, assim a sucumbir à fome e à inação geral, porque se recusavam a fazer fosse o que fosse uma sem a outra; e sempre que uma das metades morria, a que ficava procurava ao acaso outra sobrevivente a que juntar-se, fosse a metade de um ser completamente feminino (o que agora chamamos mulher) fosse a um ser masculino. Deste modo, a raça ia desaparecendo…Compadecendo-se, por fim, Zeus lança mão de outro artifício e muda-lhes para diante os órgãos genitais – até aí, efetivamente, era na parte exterior que se encontravam, processando-se as funções de gerar e dar à luz, não de uns para outros, mas por intermédio da Terra, à semelhança do que acontece com as cigarras. Ao mudar-lhes, pois, os órgãos genitais para diante, Zeus determinou que a geração humana passasse também a efetuar-se de uns para outros, mediante tais órgãos – na fêmea, por intermédio do macho. E eis o que tinha em vista: se acaso a cópula se desse entre homem e mulher, o resultado seria procriarem e perpetuarem a espécie; se entre dois varões, haveria pelo menos a plenitude da união e, uma vez apaziguado o desejo, poderiam voltar às suas tarefas e interessar-se por outros aspectos da vida. Dessa época longínqua data, sem dúvida, a implantação do amor entre homens – o amor que restabelece o nosso estado original e procura fazer de dois em um só, curando assim a natureza humana.” (O Banquete, p.53-55)

Quer isto dizer que a humanidade, segundo esta narrativa mítica, surge do Andrógino – que devido a sua polarização (masculino/feminina), fá-lo ser pleno, dotado de forças e características para concorrer com os deuses e, talvez, até dominá-los, pois a sua divisão surge de um castigo divino, cuja condenação perpétua é ser uma “téssera” humana, ou seja, uma metade, divididos como estão.

O vocábulo téssera provém da palavra grega “symbolon” que era o nome dado a metade de um dado que o dono da casa repartia com o seu hóspede para que mais tarde eles os dois, ou os seus descendentes, pudessem reconhecer o laço de hospitalidade que os unia. Outra aplicação comum da téssera ocorria nos tempos de guerra, antes da partida para a frente de batalha, o soldado e sua amada rasgavam ao meio uma foto do casal, a metade que continha a imagem do soldado ficava na posse da amada, a outra metade da foto com imagem dela ficava com o soldado. O objectivo seria cumprir a promessa de um dia juntarem as duas metades da foto de forma a voltar a ser uma só foto.

E assim, acontece no amor:

“Sempre que um amante encontra essa mesma metade que lhe pertence, eis que de súbito os assalta uma estranha impressão de amizade, de parentesco, de amor, enfim e, a tal ponto que já não aceitam separem-se um instante que seja! Esses são justamente os que permanecem juntos durante toda a sua vida – muito embora não soubessem sequer dizer-vos o que esperam, em concreto, um do outro…Não passa, de certo, pela cabeça de ninguém que seja meramente a união dos sentidos a causa do seu afã e do prazer que sentem em estar juntos. Visivelmente, é a alma de cada um que aspira a algo mais, algo que ela não sabe exprimir mas que advinha e deixa discretamente insinuar-se…” (O Banquete, p.53-55)

Contudo, Freud em seu texto Uma recordação de infância de Leonardo da Vinci escreveu que talvez o amor seja uma outra coisa, pois se o mito do Andrógino elucida a necessidade da alma em encontrar outra alma, de forma a dar-lhe a ilusão de força e de poder do Andrógino, a Psicologia defende que a téssera do mito já é o todo porque do ponto de vista psíquico o Homem é constituído da unidade andrógina (masculino/feminina), um ser único e completo, portanto.

Assim, podemos concluir que o amor poderá ser uma escolha, cada um de nós pode escolher se quer amar o nosso igual, ou a outra metade que cada um de nós necessita encontrar para completar o todo.

António Serzedelo e a Liberdade para as Minorias Sexuais

24 de Junho de 2020

“Vítimas da mais autoritária repressão jurídica e social, os homossexuais portugueses têm tudo a reivindicar, desde a integridade de cidadãos, à possibilidade de se incluírem em qualquer movimento político revolucionário.

Viva a Homossexualidade, Viva a Revolução!”

A treze de Maio de 1974, poucos dias depois do 25 de Abril foi publicado em Portugal o 1º Manifesto da Homossexualidade denominado “Liberdade para as Minorias Sexuais”. António Serzedelo foi um dos autores deste manifesto e encerrou este ano a sua acção como presidente na Associação Opus Diversidades depois de 22 anos.

O António como historiador de formação e uma das pessoas com mais anos de luta pelos direitos da população LGBTI em Portugal pode-nos dar uma breve resenha histórica sobre o que tem sido a defesa dos direitos LGBTI dado que celebramos o mês da Revolta de Stonewall?

António: Agradeço ao Colectivo LGBTI Viseu a oportunidade, e a honra que me dá, de expor o meu pensamento relativamente a certas matérias que nos interessam como Cidadãos o que é francamente raro para comigo. 

Começo por dizer que acho, de facto, que a luta da população LGBTI é revolucionária, porque trata de lutar contra ideias religiosas, políticas, e sociais com mais de dois mil anos. E  propõe sérias mudanças sociais, que revolucionam as nossas sociedades, pouco habituadas à Igualdade. 

Começando pelo judaísmo que abominava os homossexuais porque precisava de homens para a guerra e a homossexualidade não é reprodutiva. O cristianismo  amaldiçoou os,  pois considerou que era, ” um pecado contra natura”, que muito se apregoa ainda nos dias de hoje. 

Do mesmo modo, foram rejeitados pelo Islão que considerou que o homem estava feito para a mulher, e também para ter filhos, sendo possível um homem pode ter até 4 mulheres, mais as concubinas que puder sustentar.

Para  lutar contra todas estas crenças, e poderes, e vence-las, é preciso ter muita força interior, muita coragem, muita obstinação e  para continuar,  muito inteligência, vontade e não desistir… 

Foi o que começou a acontecer no mundo ocidental depois da Grande Guerra de 1945, em que os homossexuais deram a vida pela Pátria, enquanto outros tantos foram assassinados pelos regimes nazi e fascista de Mussolini e Hitler.

Teriam de passar ainda muitos anos até que a coragem voltasse, tendo surgido inesperadamente  em Nova Iorque em 1969, quando pessoas LGBT frequentadoras de um bar da cidade denominado Stonewall Inn reagiram durante dias contra uma tentativa de encerramento do seu espaço de liberdade. Atacaram a polícia que não esperava uma resistência tão forte e unitária, e com a solidariedade dos vizinhos, conseguiram derrota-la, após uma semana de luta contra as forças policiais. 

Hoje em dia enfrentamos novamente, com Trump nos EUA,  Bolsonaro no Brasil,  János Áder na Hungria e com Andrzej Duda na Polónia, entre outros, uma luta que para muitos nunca deixou de existir porque nenhum direito é irrevogável e imutável, e a conquista de direitos infelizmente em certos países está a ter retrocessos. É preciso conhecer estas realidades e não ficar indiferente e fazer ouvir as nossas vozes enquanto os direitos e a igualdade não existir para todas as pessoas.

Formar um grupo de defesa dos direitos LGBTI em Portugal, num país onde ser LGBTI ainda é considerado um assunto um pouco tabú naquela altura deve ter sido um grande desafio. Como foram recebidos na altura?

António: O 25 de Abril, que o  meu grupo de amigos e eu já esperávamos, sem saber exactamente quando seria, fez nos ir afinando os conceitos, com conversas que tínhamos por telefone, entre Lisboa e Porto onde residíamos. 

Naquela altura, nenhum de nós tinha ouvido falar do Stonewall, porque  o regime fascista vigente, nunca deixava chegar cá informações, devido à censura. A nossa cultura era predominante francesa, era onde podíamos ir, e de lá  trazer livros às escondidas. 

No contexto libertário, do anúncio de um futuro aberto e melhor para Portugal com o 25 Abril, isso encorajou-nos. Resolvermos agir social e politicamente, elaborando o 1º Manifesto LGBTI escrito em Portugal denominado de “Liberdade para as Minorias Sexuais” e mandando esse Manifesto para os dois jornais mais lidos no país na altura. 

O Diário de Notícias, onde o chefe da redação era meu amigo, o jornalista Carlos Pinto Coelho, e o Diário de Lisboa, que o publicou integralmente, graças a intervenção do seu diretor adjunto, Fernando Dacosta na altura meu conhecido, hoje um amigo.

O Manifesto fez tal estrondo que um General da Força Aérea, da Junta de Salvação Nacional veio a televisão dizer que o 25 de Abril não se fizera para os homossexuais e a prostitutas reivindicarem, o que quer que  fosse. Assim caiu toda a possibilidade  que precisávamos para impor uma nova verdade sobre a homossexualidade.

Devo salientar que havia nesta época muitos homossexuais poetas, escritores, pintores e músicos que estavam associados ao PCP então já da linha de A. Cunhal  alinhado pró soviético. Esta linha condenava implacavelmente a homossexualidade como um vicio  burguês, e perseguia-os,  mandando-os posteriormente para campos  de concentração onde morriam. E foi nessa lógica  que  um Secretário Geral do PCP anterior a Cunhal foi denunciado à Pide, e depois, enviado para o campo de concentração do Tarrafal, onde esteve muitos anos. Em 1980 surgiu o Colectivo de Homossexuais Revolucionários (CHOR) extinguindo-se cerca de um ano depois. Em 1991 Surge dentro do Partido Socialista Revolucionário “PSR” um Grupo de Trabalho Homossexual “GTH-PSR que durou até 2003.

Com entrada na União Europeia começamos a ver  abrirem-se  as cabeças dos portugueses, porém  o código penal ainda não nos tinha libertado pelo que teve de ser modificado despenalizando a homossexualidade. Porém em  nenhuma cidade do país, os gays e lésbicas, tinham visibilidade para além de Lisboa. 

Foi o governo de direita de Cavaco e Silva que encurralando as forças de esquerda  portuguesas as obrigou a olhar para a questão e a colocar na agenda os direitos das pessoas LGBTI+. Nessa altura aparece a ILGA Portugal, assimilando o nome da ILGA Europe, posteriormente a Opus Gay e o Clube SAFO que teve como antecedente a revista Organa. 

Todos estes grupos surgem no momento em que aparece a problemática da SIDA, que foi por muitos considerado um castigo de Deus para os homossexuais, e isso travou a luta pelos direitos LGBTI+ quando estavam prestes a começar, para nos dedicarmos com força, à luta contra a SIDA. O grupo social que iria levar para a frente a luta contra a SIDA na altura, seria a Abraço, da Margarida Martins.

Em 2002 a Opus Gay foi o anfitrião da conferência anual em Lisboa da ILGA Europa, tendo este evento bastante impacto e que levou à elaboração de planos e propostas sobre alteração de artigos relativos a discriminação, entre outros.

Se as leis existem e nos protegem em Portugal hoje em dia relativamente à discriminação e se ela mesmo assim continua a existir, imaginem como seria na altura sem leis e com um país ainda a esticar as pernas de uma ditadura de quase 50 anos.

As primeiras marchas pelos direitos LGBTI+ foram muito contestadas pela população e pelas opiniões mas todos os anos as marchas cresciam em números de aderentes, e foram-se impondo na cidade de Lisboa e pelo resto do país como se verifica hoje em dia.

A Opus Diversidades, na altura Opus Gay foi fundada em 1997, pode nos descrever quais os projectos mais emblemáticos da associação?

António: O primeiro projeto foi criado exclusivamente para lutar contra a homofobia, que era muito aguda e visível em Portugal, e crescendo à medida que as nossas reivindicações vinham tendo eco nas Universidades Portuguesas, na opinião pública e nos média. Recordo  que Alberto João Jardim, líder do PSD e do governo da Madeira, fez um discurso público, onde  afirmou que os dois grandes males de Portugal eram o PCP e a Opus Gay. O segundo projecto, foi a  luta contra o preconceito da SIDA. O terceiro, um atendimento personalizado a homossexuais na sede.

Criamos também uma sucursal no Porto, que estava a funcionar bem, mas foi invadida por pessoas contra o projecto na altura e que tentaram controla-la tendo conseguido acabar com ela.

Agora, temos uma sucursal na Madeira que funciona  bastante bem, e está em boas relações com o governo Regional e com a CM do Funchal e é liderada por Paulo Spínola. 

A autarquia onde estão inseridos tem regra geral apoiado as vossas iniciativas. Como vê em termos de panorama nacional o apoio dos organismos estatais às organizações de direitos LGBTI+?

António: Devo dizer  que vejo com muito bons olhos o apoio que o Estado tem prestado relativamente aos direitos das pessoas LGBTI+, graças à Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, como deve ser. 

Muitas vezes a continuidade de projectos ou a aprovação dos mesmos depende dos profissionais que estão à frente das CM, pois estes projectos têm de ser votados e os critérios de voto nem sempre são iguais. Felizmente vimos muitos projectos da Opus Diversidades aprovados, enquanto que outros não tiveram sucesso. Muitas vezes as questões políticas e as cores partidárias sobrepõe-se aos direitos das pessoas e às questões sociais que tanta importância têm.

Espero que a Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade agarre o projeto de lares para LGBT na cidade de Lisboa e no Porto para começar, porque a população LGBTI+ envelhecida continua muito esquecida.

Também é  preciso criar um Museu sobre a História da luta da população LGBTI+ portuguesa, como há em várias capitais do Mundo, para que datas, acontecimentos, pessoas e direitos fossem relembrados porque esta luta é de todas as pessoas.

Pode dar-nos uma retroespectiva do que mudou em Portugal nestes últimos 23 anos em termos de questões LGBTI+. (conquistas, mudanças)

António: Mudou a mentalidade e isso nota-se sobretudo nas cidades principais, pois  já temos uma aceitação muito grande da população, que nos apoia, e simpatiza com a nossa causa.

Por isso são cada vez mais, as Marchas pelos Direitos LGBTI+ que se realizam  em Portugal. Em Viseu a primeira realizada em 2018 foi um grande sucesso. Ver isso a acontecer depois das agressões a pessoas homossexuais em 2005 na mesma cidade e à manifestação que houve contra essa violência no rossio de Viseu nessa altura onde eu participei e onde fui ofendido por um homem enquanto tentava discursar que me insultou e ameaçou, sem qualquer intervenção ou protecção da parte da polícia, é verificar uma grande mudança de mentalidades e comportamentos. 

A luta pelas Uniões de Facto que  triunfou graças à união de alguns partidos políticos,  assim  como a despenalização da homossexualidade, do aborto, foram tudo  momentos marcantes  de viragem da mentalidade portuguesa muito agarrada à Igreja e aos valores que herdarmos do Estado fascista, Deus, Pátria e Família enraizados na mentalidade dos portugueses tão intrinsecamente que ainda hoje muitas vezes prevalece. 

Depois, veio o Casamento entre pessoas do mesmo sexo, que  foi um passo enorme, e que hoje já está se verifica ser mais aceite na sociedade portuguesa. 

A lei que saiu em 2018 relativamente ao Direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa, que protege as pessoas Trans e defende os seus direitos, é também um marco histórico ainda que sejam necessários muitos anos para que as palavras dessa lei sejam aplicadas em termos de sociedade e que as mentalidades se adequem.

Sabemos que houve uma mudança na direcção da Opus Diversidades e por conseguinte na sua vida. Pode-nos contar o que mudou?

António: Recentemente houve eleições na Opus Diversidades e deixei de ser presidente da associação depois de 22 anos. A direcção passou para as mãos de Hélder Bértolo. Fico como sócio e subscrevo com ele as seguintes necessidades que escrutinou:

A luta a favor dos LGBT idosos para os retirar do segundo armário em que a sociedade os meteu, o que obriga  muito deles que tiveram uma vida livre, a voltarem para a  solidão, e  de ter de fingir aquilo que não são. Em segundo lugar, a luta a favor dos imigrantes e refugiados que venham para Portugal, reconhecido unanimemente como oásis de paz, para cada um viver a vida que quer viver, respeitando o espaço de cada um. Em terceiro lugar, a luta pelo reconhecimento da dignidade das pessoas transexuais.

Entendo ainda que precisamos de nos unir às lutas pela Humanidade de hoje, para alargar o nosso apoio:

Devemos apoiar a luta pela Igualdade das Mulheres, a luta contra a  violência doméstica, a luta anti-racista, a luta contra o aquecimento global, pela ecologia e pela sustentabilidade que têm de ser percebida por todos os LGBT como crucial, e ao mesmo tempo sem largar a  luta pela liberdade sexual. Desta forma arranjaremos apoios mais diversificados. 

Uma é uma luta coletiva pela Humanidade, ao lado de outra, individual, mas libertária que dá dignidade aos cidadãos porque é igualitária.

O Mundo de hoje precisa e merece todas elas, particularmente depois de sermos invadidos pelo coronavírus, que nos obrigou a mudar todas as regras do jogo.

E porque sabemos que não sabe estar parado podemos saber quais são os projectos para o futuro?

António: Vou-me dedicar ao programa Vidas Alternativas, que há vinte anos que está no ar  e que conta com uma média de cerca de dez mil leitores por postagem, graças ao meu amigo brasileiro Marcelo Pombo que o coordena. Pretendo remodelar a página do site do programa e estender a transmissão deste a mais rádios. Neste momento passa em cinco rádios locais, incluindo em Viseu na  Rádio Viriato, mas pretendo que passe em mais. O site será remodelado por isso com esse intuito também.

Apoiar projetos inovatórios que apareçam, particularmente na área dos refugiados e dos imigrantes. Temos um caso complicado na Turquia que há um ano tentamos resolver e trazer para Portugal, de um homem iraquiano que temos que salvar, para evitar que seja devolvido ao Iraque onde será condenado à morte devido à sua orientação sexual. É urgente fazer o apelo e chamar a atenção para estas situações às organizações envolvidas nestas questões.

Na Junta de Freguesia de Arroios, onde sou vogal, estou a trabalhar com a Presidente para fazermos  um programa, que a Santa Casa de Lisboa apoia, dirigido a todos as questões que envolvem as pessoas mais velhas, questões como a saúde, solidão, família, diversão, ginástica, contos, exposições e inclusive as universidades.

Outro dos projectos é dirigido aos imigrantes que habitam a nossa freguesia falando nas suas mais diversas línguas de múltiplos países, onde se incluem também os  irmãos brasileiros, para os ajudar com os múltiplos problemas que enfrentam, com a nossa burocracia, procura de trabalho e de residência.

Também a título pessoal prosseguir com a ginástica através da internet com P.T, diariamente, pois faz bem! Estar com os animais de que gosto muito, com as pessoas amigas, algumas já muito mais jovens do que eu,  o que me dá muito prazer, e é uma honra sentir tanta estima destas pessoas e contribuírem  desta forma para a minha alegria de viver. Tenciono continuar o mestrado que estou a fazer na Universidade Lusófona.

Continuar à espera de propostas desafiantes que vierem ter comigo… e

Continuar a lutar pela Igualdade, Liberdade e Solidariedade como fiz sempre… 

Estando só e estando bem comigo!

Obrigado!

A.Serzedelo

A sexualidade traduzida pelo mito do Andrógino (parte I)

Nuno Ferreira

17 de Junho de 2020

A literatura mítica dá-nos a conhecer que Eros – deus do amor – é o mais antigo dos deuses, sendo ele, também, conhecido como uma criança alada (Cupido) munida de arco e flecha para atingir o coração ou o fígado com as suas flechas envenenadas pela paixão e pelo amor. Segundo Aristófanes (dramaturgo grego que nasceu no ano 447 antes de Cristo e morreu, aproximadamente, a 385 antes de Cristo), Eros é um dos mitos protagonizados por Zeus à humanidade, através do castigo que condena-o para toda a eternidade a desejar encontrar alguém a quem amar, “sentença” que parece estar imortalizada na voz de Tom Jobim quando criou “Eu sei que vou te amar” no século passado: “Eu sei que vou te amar / Por toda a minha vida, eu vou te amar / Em cada despedida, eu vou te amar, / Desesperadamente / Eu sei que vou te amar (…)”.

Todavia, o mito do Andrógino relatado pelo dramaturgo grego e o texto clássico “O Banquete” de Platão faz-nos pensar se o amor poderá ser uma sensação ou, pelo contrário, uma condenação. E, tudo começou no tempo dos deuses do Olimpo – um tempo primordial – no qual, a natureza humana, imagine, era diferente daquela que conhecemos hoje. Diz o mito que, no início, existiam três géneros de seres humanos – o macho, a fêmea e, ainda um terceiro, que reunia características dos outros dois – e que fora batizado de Andrógino. 

Este ser, no que respeita à forma, é-nos apresentado como sendo inteiro e globular, possuindo as costas e os flancos arredondados, têm duas faces iguais uma da outra, uma cabeça única onde assentavam as faces, colocadas em sentidos opostos, tinham ainda quatro orelhas, órgãos genitais em número de dois, postura corporal idêntica à nossa, ou seja, caminhavam erectos, mas nos dois sentidos que desejassem. Porém, necessitando de correr, faziam-no às cambalhotas, projetando as pernas para o ar, como os equilibristas, até regressarem à posição vertical. Assim, apoiados nos seus membros, que eram então oito, deslocavam-se velozmente em círculo.

Quanto a origem de cada género dos seres humanos pode ler-se que o macho era o rebento Andros, filho do Sol, a fêmea era Gynos, filha da Terra, e Androgynos era filha/filho da Lua. Este ser reunia as características dos outros dois, feminina e masculina, dado que também a Lua partilhava da natureza do Sol e da Terra. Daí o facto de serem globulares, pois eles possuíam características semelhantes dos seus progenitores: Sol, Terra e Lua.

Sobre a figura do Andrógino, percebe-se que este ser é dotado de uma terrível força e resistência física, características que permitem-lhe gozar de uma ambição desmedida, a ponto de conspirar contra os deuses. Contudo, Zeus – o deus dos deuses – que tudo sabia, descobriu o plano conspiratório dos Andróginos e, com as restantes divindades do Olimpo, passou a delinear um castigo para aplicar aos subordinados e, a primeira das possibilidades pensadas seria a extinção da raça, fulminada por um raio. Entretanto, repensou, e mudou de ideia, pois isso não convinha aos deuses, pelo simples facto de os deuses deixarem de receber as homenagens e os sacrifícios que lhes advinham dos humanos. A outra possibilidade surgiu depois de Zeus muito pensar e que o levou a decidir, e arranjou um meio de manter os machos, mas acabar com a sua arrogância, e resolveu dividi-los ao meio, um por um, deixando-os mais fracos e, beneficiando os deuses ao aumentar o número de benefícios.

Segundo Platão: “Dito e feito. Pôs-se a cortar os homens às metades, exatamente como se cortam sorvas para as pôr em conserva (ou como se faz aos ovos com um cabelo). À medida que os ia cortando, encarregava Apolo de lhes virar o rosto e a metade do pescoço para a superfície amputada, na ideia de que os homens se tornariam mais humildes com o espetáculo da sua própria amputação diante dos olhos. E ordenou ainda que os sarasse das restantes feridas, Apolo tratava, pois, de lhes virar o rosto, e repuxando a pele de todos uso lados para aparte agora designada por ventre, apartava-a com toda a força, à maneira de bolsas providas de cordões, em volta de uma única abertura que deixou mesmo no meio do ventre – justamente o que hoje chamamos de umbigo. Alisou-lhes ainda numerosas rugas que ficaram e modelou-lhes o peito com o instrumento do género dos que usam os cordoeiros para aplanar as rugas do coiro em volta da forma. Todavia, deixou-lhes umas tantas, mesmo na região do ventre e do umbigo, como lembrança do antigo estado.”

(continua…)

Pulse

Sam Blue & Sara Estrela

12 de Junho de 2020

Quando decidimos ir de lua-de-mel a Orlando, ir ao Pulse prestar homenagem esteve sempre nos nossos planos. E, para quem não está dentro do assunto, o Pulse era uma das maiores discotecas LGBTI da cidade de Orlando, onde na madrugada de 12 de junho de 2016 houve um tiroteio que matou 49 pessoas, sendo considerado o pior tiroteio da história recente do Estados Unidos. Agora, após a nossa ida, foi inaugurado um memorial, pela OnePulse Foundation, que tem como objetivos a abertura do memorial e de um museu, e a criação de programas educacionais e bolsas para a comunidade LGBTI+.

O “engraçado” é que imaginamos sempre o local como sendo escuro, afastado, longe de tudo e todos, sem saída. No entanto, quando lá chegamos, depressa nos apercebemos que estávamos no meio de uma zona residencial, com áreas abertas, cheia de vida nas ruas, e, tornou-se ainda mais difícil entender como pôde acontecer algo tão macabro.

Nas paredes do Pulse, ainda se podem ver as marcas do massacre, até mesmo as marcas do sítio onde os primeiros socorros/polícia tiveram de derrubar as paredes para entrar… e isso despoletou em nós uma sensação de desespero e de claustrofobia, em que nos sentimos encurraladas lá dentro, com todas aquelas pessoas. Olhar para os nomes e sentir que podia ser o nosso nome ali escrito, é algo brutal e esmagadoramente triste.

Como alguém, presente no local no dia em que o visitamos, nos disse, não foi uma questão de orientação sexual, não foi uma questão de identidade de género ou de etnia, foi uma questão de ódio puro e duro.

Apesar da dor que sente no local, o sentimento que permanece, e as mensagens lá deixadas ainda são de esperança e de “Keep Orlando Strong” (Manter Orlando Forte) e de que todos querem ainda lutar por uma Orlando melhor, por um mundo melhor.

Mas acima de tudo, esta visita fez-nos pensar que nos devemos lembrar de amar, de assumir o quanto amamos, de não ter medo, porque o medo é a chave para o desespero, e isso é o que ataques como este pretendem, que desapareçamos, que tenhamos medo, que voltemos para a escuridão dos nossos armários. Como um dia alguém muito sábio nos disse, não podemos mudar o passado, mas podemos lutar por um futuro melhor. E é esse o caminho, lutar por um futuro brilhante, com menos medo, por nós, por eles, pelos nossos, pelas próximas gerações e por todas as pessoas.

Tiago Braga

20 de Maio de 2020

“No final, perde quem mais sofrer

E afinal, são dois a perder”

Tiago Braga

Conhecemos Tiago Braga em Novembro de 2018 durante a apresentação do livro de João Geraldes [(des)orientação] em Viseu. Tiago acompanhado por Rita Lima trouxe-nos um acústico que nos encantou dando-nos a conhecer o seu trabalho. Temos vindo a acompanhar o progresso desde esse dia e ficamos muito contentes que o seu trabalho esteja a ser reconhecido.

Quem é o Tiago Braga? Quem é a pessoa para além do artista?

Tiago: Essa pergunta é engraçada porque eu sempre achei que enquanto artista e enquanto pessoa não era muito diferente, mas ainda esta semana me disseram que pessoalmente sou muito diferente em pessoa daquilo que mostro nas redes sociais (felizmente disseram-me que era mais interessante ao vivo). E eu acho que isso se deve ao facto de eu no dia a dia ser na mesma o Tiago Braga, mas numa versão mais orgânica, mais autêntica e mais calma talvez. Não gosto de usar camisas extravagantes e maquilhagem todos os dias, não gosto de estar nas redes sociais e quando tenho tempo livre prefiro vestir uma roupa confortável e ir passear ou ficar em casa a cozinhar e ver filmes. Mas tudo aquilo que sou quando estou em palco ou nos videoclipes surge da versão de mim que está em casa de pijama a ter ideias, por isso é mesmo muito difícil separar uma da outra.

Fala-nos um bocado sobre o teu percurso como artista?

Tiago: Eu comecei o meu percurso como artista no Youtube a fazer covers. Depois cansei-me do Youtube e dos covers e quis dedicar-me a compor músicas originais, que é o que tenho feito ao longo dos últimos anos, para mim e para outros artistas. Não tem sido um caminho fácil porque desde que comecei que sempre estive independente. E não é nada fácil ser-se um artista independente em Portugal e pagar contas no final do mês. Mas desde que me assumi em 2018 com o “Ilusão” sinto que aquilo que faço tem feito mais sentido, porque serve um propósito maior e porque ajuda outras pessoas a não terem medo de serem quem são.

Como tens sido recebido pelo público e como lidas com esse reconhecimento?

Tiago: Acho que tenho tido imensa sorte, há altos e baixos mas no final o saldo é claramente positivo. Tenho crescido mais devagarinho do que gostava mas é reconfortante quando vou tocar a um sítio onde nunca tinha estado e há sempre alguém que me vem dar os parabéns ou agradecer por ter feito o meu coming out.

Como foi a reacção das pessoas relativamente ao teu coming out enquanto artista?

Tiago: Desde que fiz o meu coming out em 2018 sinto que dei um salto enorme na minha carreira e só tenho recebiso carinho por parte de quem me segue. E acho que tenho conseguido quebrar várias barreiras, provavelmente a maior delas foi estar ao vivo e em directo no Jornal de Notícias a falar sobre homossexualidade mas ainda há muita pedra por partir. No final do dia o que importa são mesmo as pessoas que me apoiam, que ouvem a minha música e que me querem continuar a seguir. E é nisso que me tento concentrar. Mas desengane-se quem acha que é tudo um mar de rosas.

Vês a tua música como uma forma de activismo LGBTI+?

Tiago: eu acho que todos nós somos um pouco ativistas no dia a dia. Todos os pequenos atos de uma pessoa LGBT que não tem medo de ser quem é no dia a dia acabam por ser pequenos atos de ativismo. E por isso talvez a minha música também o seja. Mas eu prefiro dizer que vejo a minha música como uma forma de representação. Porque há pessoas que fazem um trabalho muito mais importante do que no campo do ativismo e seria injusto estar a por aquilo que eu faço no mesmo patamar daquilo que essas pessoas fazem. Eu sou um artista musical que não tem medo de assumir que gosta de homens e de fazer videoclipes com histórias gay’s, só isso.

Existem pessoas que consideram já não ser necessário a exposição pública da orientação sexual e identidade de género. Qual a tua opinião sobre o movimento LGBTI+ em Portugal e a necessidade da sua existência?

Tiago: Eu acho que as pessoas que consideram já não ser necessário a exposição pública da orientação sexual e identidade de género vivem numa bolha de privilégio. Ou porque a sua orientação sexual e identidade de género é normativa ou porque mesmo sendo LGBT sempre viveram numa bolha de privilégio. E estas pessoas não têm culpa, a maior parte das vezes, por terem sido criadas numa bolha de privilégio. Mas têm uma certa responsabilidade por não quererem sair dessa bolha. Sim Portugal é um país com legislação imensamente avançada em matérias LGBT. Sim Portugal é um país que permite o casamento e a adoção homossexual. Sim Portugal é um país gay-friendly. Mas isso é só no papel, porque na prática Portugal ainda é um país homofóbico, infelizmente.

Eu tive a sorte de crescer numa bolha com algum privilégio. Os meus amigos e família sempre me aceitaram por ser quem sou e consigo contar com os dedos de uma só mão as situações de homofobia explícita e dirigida a mim pelas quais passei. E se me perguntassem com base na minha experiência de vida se acho que Portugal é um país homofóbico, a minha resposta seria não. Mas a minha experiência de vida, a minha bolha, não é a realidade. E eu sei disso porque passados quase 2 anos de ter feito um coming out continuo a receber mensagens de pessoas que sofrem homofobia. Pessoas que não se sentem seguras, que não se sentem aceites, que não se sentem felizes. Já para não falar de que quando temos movimentos políticos de extrema direita a ganhar tração no país, não se pode dizer que estamos todos livres de perigo. Acho que devíamos estar todos muito mais alarmados com estas questões.

Tivemos o prazer de ver a tua actuação no Porto Pride. Como te sentiste a actuar num evento LGBTI+ daquela dimensão na tua cidade?

Tiago: foi um dos melhores momentos na minha vida e acho que me vou lembrar desse concerto para sempre. Foi um concerto muito importante para mim por três razões. Primeiro, porque foi o meu primeiro concerto com uma banda completa em palco, desenhado de raíz por mim e para mim. Segundo, porque foi o primeiro grande concerto que dei num evento LGBTI+. E por fim porque toquei em casa, na cidade que mais me é querida, o Porto.

Que projectos tens para o futuro?

Tiago: Antes da atual pandemia, estava a trabalhar num novo single e tinha até em mente lançar um EP este ano. Quanto ao EP, acho que dificilmente se vai concretizar, porque infelizmente neste momento os meus rendimentos da música estão a zero. Quanto ao single, eu queria mesmo muito lança-lo como deve ser, o que significa gravar um videoclipe. A música está praticamente terminada e o guião do videoclipe também já está fechado, ia começar a tratar de organizar as gravações quando fomos todos obrigados a ficar em casa. Tendo em conta que a vida não vai voltar ao normal tão cedo, não sei quando vou conseguir gravar o videoclipe. E estou indeciso se faz sequer sentido lançar a música sem um videoclipe e um plano de promoção como deve ser, ou esperar mais uns meses e lançar a música quando tiver condições para fazer tudo aquilo que idealizei. Por isso, sinceramente, neste momento os meus planos para o futuro são um pouco incertos, para ser honesto. E acredito que todos os artistas da indústria musical, sobretudo os independentes, infelizmente também vivem este ambiente de incerteza.

Uma História Reveladora

Iara Lugatte

12 de Maio de 2020

Vou lhes contar um caso real que, certamente, alguns já conhecem de alguma maneira, ou por terem vivido esta situação ou por conhecerem alguém que passa/passou por essa experiência.

Ainda hoje, com toda a informação e o avanço tecnológico, temos conhecimento de pessoas LGBT que mantém em segredo a sua orientação sexual, seja por medo de assumir-se, seja por questão religiosa e até de sentimento de culpa. E, é aqui que começa a história de um homem com 40 anos, casado com a sua primeira namorada. Ele médico e ela pedagoga, e pais de uma filha de 10 anos. Ele, filho único, educado com muito carinho e amor. A sua relação familiar sempre foi/é o seu grande pilar emocional, principalmente com a sua mãe. Entretanto, ele nunca conseguiu falar para ninguém sobre a sua homossexualidade e os seus desejos mais íntimos. Trabalhava como médico em instituições públicas no atendimento às pessoas carenciadas, que o preenchia sobre maneira. Mantinha uma rotina como tantos outros casais, trabalho, casa, família e estudos. Mas não era só isso que o fazia sentir-se inteiro, faltava satisfação pessoal, existencial, algo maior que tirava-lhe a tranquilidade, e causava-lhe um grande sentimento de culpa. Sentia-se atraído sexualmente por outros homens, apesar do seu quotidiano familiar equilibrado, “não sentia-se completo”.

Embora, todos saibamos que somos seres incompletos, com muitos furos, muitos espaços vazios, mas para ele entrar em contato com a sua incompletude causava-lhe inquietação.

Depois de muito pensar, refletir e pesquisar sobre o assunto, e na solidão da sua vida, tomou a decisão de procurar um psicanalista para falar sobre os seus sentimentos, sobre a sua vida familiar e os seus desejos homossexuais, negados por ele durante tantos anos para não desiludir as pessoas que ele amava.

Com o decorrer da psicoterapia, o paciente foi entrando em contato com o seu desejo, compreendendo-o e aceitando-o com normalidade. Também percebeu que estava profundamente infeliz com a escolha que fizera casando-se aos 28 anos, acreditando ele que, assim, estaria resolvido o seu “problema”, sim, ele acreditava ser um problema, não clínico, mas social e familiar.

O seu processo psicoterapêutico teve uma excelente evolução, uma vez que a decisão de procurar ajuda foi única e exclusivamente dele.

Havia um detalhe em toda a história de vida do paciente que o deixava inquieto: ele queria falar sobre a sua homossexualidade, primeiramente, para a mãe, mas outros fantasmas o assombravam, e qual seria a reação dela diante dessa revelação? E a relação de confiança e afeto que havia entre eles, seria quebrada?

Enfim, após 10 meses de psicoterapia com 3 consultas semanais de 50 minutos cada uma, ele encontrou forças para abrir o seu coração com a mãe, e convidou-a para jantar, só os dois, para conversarem a vontade. Nesta noite foi diferente, após o jantar, a mãe percebeu alguma inquietação no filho (afinal, mãe pressente coisas, vê coisas, ouve coisas … J), convidou-o para uma caminhada até a praia. Sentaram-se a apreciar o mar na sua calmaria, e a lua prateada refletindo sobre as águas, era um cenário perfeito para uma conversa delicada. E, com todo o cuidado, ele começou a conversa, procurando as palavras certas para explicar à sua mãe o que o inquietava, a sua homossexualidade há muito adormecida. E, qual foi a sua surpresa que, a meio da conversa, a sua mãe olha para ele, interrompe-o, e diz “você está tentando dizer-me que é homossexual? Não se preocupe, eu sempre soube, e nunca deixei de respeitá-lo e admirá-lo por isso, mesmo quando você resolveu casar-se”. Alívio!

No dia seguinte ele chega na consulta antes do seu horário habitual, ansioso para dividir com o seu psicólogo o que acontecera na noite anterior. Assim sendo, preferiu aguardar na sala de espera. Nesta consulta, ele relata a conversa que teve com a sua mãe, e fala sobre o quão importante foi para ele poder falar sem culpa, bem como, as palavras da mãe carregadas de amor e delicadeza. Feliz por isso, mas angustiado porque o próximo passo seria contar a sua mulher e, a partir daí, dar um novo rumo a sua vida. Terminou a consulta decidido a não adiar mais a conversa com a sua companheira.

Foi uma conversa difícil, dolorosa, com muita emoção de ambos, mas verdadeira, esclarecedora, definitiva e respeitosa. Decidiram, em comum acordo, pela separação amigável para que os dois tivessem a chance de construírem outras relações amorosas. Após expor toda a sua angústia por viver uma vida que não era verdadeira, embora o afeto que sentia por ela não estivesse em causa, sentiu-se, finalmente, livre.

Resolvida essa questão, ele não desistiu da sua psicoterapia, muito pelo contrário, manteve a continuidade das suas consultas para conhecer-se melhor, e abraçar a sua nova vida, sem culpa e sem amarras.

Moral da história: a Psicanálise é uma ferramenta fundamental, mas ninguém abre mão do seu desejo.

Diogo Vieira da Silva e o Activismo

 21 de Abril de 2020

“Incomoda-me haver a perceção generalizada de que o ativismo é feito apenas por alguns como se fosse um ato distante, praticado por uma cúpula de pessoas inatingíveis.”

Diogo Vieira da Silva esteve como convidado em Viseu durante a apresentação de um livro que prefaciou em 2018. Desde essa altura que nos cruzámos várias vezes, quer através das redes sociais, quer em projectos como a candidatura ao Europride 2022 que apoiámos, quer no Porto Pride 2019 onde estivemos presentes.

Quem é o Diogo Vieira da Silva além de activista pelos direitos LGBTI+?

Diogo: É filho, irmão, cidadão, trabalhador e um jovem sonhador que ainda acredita em projetos que de alguma forma, podem tornar este mundo um pouco melhor. De forma muito honesta, sou uma pessoa como qualquer comum dos mortais. Que chega a casa, depois de longas horas de trabalho/associativismo quer por vezes desligar do mundo e estar com as pessoas que mais ama.

Podes contar um pouco o teu percurso enquanto activista? (como começou, de onde partiu)

Diogo: Tentarei ser resumido. O meu percurso começa quando tinha sensivelmente 15/16 anos de idade, corriam os anos de 2005/2006. No dessepultar da adolescência e consequentemente revolta pelo sentimento de impotência da juventude. Vindo de uma realidade suburbana do Porto, vivendo no meio do campo em Astromil, mas estudando no contexto urbano de Rio Tinto onde tinha os meus amigos de infância. Comecei a despertar politicamente e a ir todos os dias para o centro do Porto durante a tarde, numa altura onde a cidade se tornava perigosamente deserta após as 18h30. Aí descobri pessoa, projetos, coletivos, organizações, acabando-me por filiar no Bloco de Esquerda, partido que pertenci durante 5 anos até 2011.

Em 2007 ajudei a criar um movimento estudantil com o intuito de instaurar uma disciplina de Educação Sexual nas Escolas, intitulado de SEQSO Somos Estudantes e Queremos uma Sexualidade sem Opressões.

Em 2008, por via do SEQSO, integrei a Comissão Organizadora da Marcha do Orgulho LGBT no Porto.

Em 2009 ajudei a fundar a CASA – Centro Avançado de Sexualidades e Afectos. Onde fui seu Vice-Presidente até 2013. Esta foi a primeira Organização Não Governamental formal que ajudei a criar e que sem dúvida alguma, mais me fez crescer, aprender e a saber quais os erros a não cometer no futuro.

Em 2012, ajudei a criar em Portugal o afiliado oficial do It Gets Better Project, na altura com o nome de Projeto Tudo Vai Melhorar, que em 2015 se tornaria numa Associação Juvenil com existência legal e mudaria o seu nome para It Gets Better Portugal.

Em 2017 fui me proposta a posição de coordenador Europeu do Projeto, oferta que anui e que ocupei até final de 2018, durante dois anos completos.

Em 2018, estando já a trabalhar na área do Turismo Gay, no The Late Birds Lisbon, ajudei a fundar a terceira Organização Não Governamental, a VARIAÇÕES – Associação de Comércio e Turismo LGBTI de Portugal, ocupando atualmente a posição de Diretor Executivo.

Em 2019, a VARIAÇÕES lança com o apoio do Turismo de Portugal, um dos seus principais e mais ambiciosos projetos, a primeira campanha de promoção de Portugal enquanto destino LGBTI, o Proudly Portugal. A qual sou um dos seus coordenadores.

Também em 2019, muito graças ao facto de a VARIAÇÕES existir e ter o privilégio de ter a amizade de uma das melhoras produtoras de eventos que conheço, a Leonor Rodrigues, conseguimos juntos tornar possível o renascer do Porto Pride e criar um evento LGBTI na cidade do Porto, gratuito e aberto a todos/as, contando com o apoio da Câmara Municipal. O que se tornou até à data, no maior evento da cidade do Porto, e desculpem a imodéstia, mas no evento LGBTI do ano de 2019 em Portugal.

Podes nos falar da tua experiência enquanto representante do It Gets Better Portugal?

Diogo: O It Gets Better é desde sempre das campanhas mais bonitas e de empoderamento da comunidade LGBTI que conheço. Lembro-me que aquando do seu surgimento orgânico nos EUA em 2010, para mim foi espetacular ver que a comunidade LGBTI e a cultura Queer podiam ser mainstream. E obviamente fez-me querer replicar isso em Portugal. É sempre difícil replicar um projeto que vem de uma cultura e sociedade muito diferente da nossa, como os EUA. Mas a seu jeito, o afiliado Português tornou-se num exemplo para os restantes afiliados, bem como a websérie “Já Melhorou”, que foi dos projetos que mais prazer, felicidade e orgulho me deu fazer. Tentamos espelhar com honestidade e sinceridade histórias de sucesso e positivas para os jovens LGBTI. Foi por isso merecedora de um prémio da marca MUCH- Underwear e outro da Câmara Municipal do Porto.

Fala-nos um pouco sobre o desafio que é ser director de uma associação como a Variações em Portugal?

Diogo: Os desafios são vários e antagónicos.

Se por um lado o sector económico foi o que permitiu criar espaços de reunião e emancipação da comunidade LGBTI, dando voz à sua cultura e artistas, são exemplo disse espaços com histórico como o Finalmente Club e o Trumps. Por outros estes negócios eram vistos até pouco tempo com maus olhos. Tanto por agentes económicos que não estavam virados para a comunidade, como pelos próprios ativistas da comunidade que habitualmente os culpabilizavam por terem lucros e os apelidavam de meramente de “capitalistas”. Felizmente ambos os dogmas estão a esvanecer e cada vez mais se perceciona a comunidade, espaços, cultura e consumidores LGBTI como uma voz audível na nossa sociedade e economia.

Há ainda muito para se fazer, nomeadamente em criar boas condições no local de trabalho para pessoas LGBTI não serem obrigadas criar um segundo armário que as oprime. Mas o caminho faz-se caminhando.

A Variações fez parte da candidatura ao Europride 2022, que mudanças consideras que iria trazer para o país e para a população LGBTI+ portuguesa?

Diogo: Eu não considero que iria trazer, eu considero mesmo que trouxe mudanças fulcrais para a população LGBTI+ portuguesa e suas organizações.

Primeiro, esta foi a primeira vez que havia uma união clara das organizações LGBTI+ em Portugal em prol de um objetivo comum. Não houve nenhuma organização, pelos menos aquelas que são internacionalistas, solidárias e formais, que se apoiassem à candidatura e não a apoiassem.

Segundo, conseguiu demonstrar que quando as organizações LGBTI+ trabalham em conjunto, conseguem ter um bargaining power que nos faz ser audíveis aos mais altos níveis do estado.

Terceiro, foi o primeiro passo para novos projetos, que surgirão no futuro, em prol da população LGBTI+ Portuguesa e internacional realizados em Portugal.

Esta foi uma candidatura vencedora, que apenas não foi escolhida, porque felizmente para nós, há um local na Europa que precisa mais da realização do EuroPride. E esse local será Belgrado em 2022.

Em Setembro podemos estar presentes no Porto Pride, como foi a experiência de organizar um evento destes no centro do Porto?

Diogo: Aí terei de fazer duas divisões, uma profissional e outro pessoal.

A profissional

Foi um dos desafios mais desgastantes que já enfrentei. Felizmente tive a inteligência de convidar uma das mulheres mais inteligentes e eficientes que conheço, a Leonor Rodrigues. Onde dividimos as tarefas. Eu fiquei responsável por toda a parte financeira/monetária do evento. Nomeadamente assegurar que tínhamos dinheiro suficiente para pagar toda a logística, mas principalmente TODOS/AS artistas que permitiram o evento acontecer. E ela elaborou toda a produção logística e artística permitindo que durante 12h interruptas de evento, o mesmo acontecesse sem nenhuma pausa ou sobressalto.

O nosso balanço é de um evento acima de qualquer das nossas melhores expectativas.

A pessoal

Quem me conhece sabe que este era um sonho com mais de 10 anos, pois em 2009 tinha feito a proposta, aquando da minha integração na Comissão Organizadora da Marcha LGBTI do Porto, em realizar um evento à semelhança do Arraial Pride em Lisboa na cidade do Porto.

Apesar de inicialmente ter sido muito bem aceite, essa decisão foi posteriormente revertida, uma vez que a mesma obrigava a alteração da data da Marcha com o evento Porto Pride – evento que era organizado desde 2001 pelos empresários do Portugal Gay (também membros da comissão organizadora) e pelo Bar Boys’R’Us, à porta fechada no emblemático Teatro Sá da Bandeira e com a cobrança de um avultado valor de entrada.

Por ironia do destino, anos mais tarde, devido à não realização do Porto Pride desde 2012, consegui fazer um pedido de caducidade da marca junto do INPI, que foi concedido, e assim registar a marca e ceder os seus direitos de utilização à Variações. A única organização com estrutura capaz de organizar um evento gratuito e de acesso livre deste calibre na cidade do Porto.

Apesar de não ser religioso, a frase “Deus escreve certo por linhas tortas” nunca me fez tanto sentido.

Que projectos tens para o futuro?

Diogo: Vários, mas não posso revelar.

Apenas posso dizer que estou disponível para criar iniciativas para a população LGBTI+ em qualquer local em Portugal que ajudem a fazer com que a frase do cabeçalho tenha cada vez menos sentido.

O Desejo Sexual

Iara Lugatte

 17 de Abril de 2020

Pedro Fernandes é Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta em Braga. Faz parte de um programa no Portal da Saúde Mental e no Porto Canal, onde aborda várias questões para esclarecer as dúvidas a perguntas que recebe por e-mail. Muitas dessas questões giram à volta da sexualidade e por isso considerei pertinente apresentar-vos um vídeo do colega sobre o tema. Com simplicidade, ele responde a todas as questões para que todos possam perceber e sem pretensiosismos. Ver vídeo

Quantas cores tem a tua casa?

Nany Aguiar 

Movimento LGBTI Leiria

03 de Abril de 2020

O que caracteriza a identidade de um espaço? A estrutura, as vigas que o sustentam? A aparência, o que se (in)veste? Os interiores, as pessoas que o frequentam? Os vazios, o que se esquece?

Há espaços que ultrapassam as suas atribuições físicas e por isso lhes chamamos lugares. E há lugares que trespassam espacialidade e se firmam no tempo; a esses poucos, costumamos chamar de casa. Na história da comunidade LGBTIQ+, a palavra “casa” tem um apelo conceitual e afetivo que toca causas tanto pessoais quanto sociais: não podemos esquecer que muitas pessoas LGBTIQ+ são tolhidas e até mesmo nos casos mais extremos, infelizmente não menos numerosos, expurgadas das suas casas de “origem”. Encontrar aquelas “casas” em que podemos entrar (e ficar) traz a imprescindível sensação viva de pertencimento.

Nestes tempos que estamos vivendo, é importante refletirmos que muitas pessoas LGBTIQ+ não se sentem em “casa” na própria casa e por isso se torna importante falar sobre esta questão.

Felizmente nem todas as casas são opressoras e punitivas. Algumas acolhem as pessoas, oferecem entretenimento, prazer, aconchego e liberdade. Independentemente da sua composição a casa deve ser o lugar onde poderemos sentir, existir, trocar experiências, nos expressar e viver. Deverá ser o lugar onde todas as pessoas são bem vindas pelo que são enquanto seres individuais.

É nesse sentido que os lugares denominados como LGBTIQ+ friendly são importantes. Devem não só ser acolhedores e protectores de todas as pessoas que os frequentam, como também saber chamar à razão/agir relativamente às pessoas LGBTIQ+ fóbicas e cujos comportamentos ponham em risco a integridade física e o espaço de cada pessoa. Proteger todas as pessoas que frequentam o nosso estabelecimento é da nossa responsabilidade. Uma casa aberta ao público não pode ser apenas um veículo de fabricar dinheiro mas sim também um local de segurança onde as pessoas possam coexistir sem perturbar a existência da outra pessoa.

Dessa forma, situações de violência LGBTIQ+ fóbicas que aconteçam dentro desses lugares precisam ser veementemente repudiadas, refletidas e debatidas. Porque essas são mais do que um desconforto, além de um desentendimento de uma noite. Esses casos alinham-se com a sistematização de uma sociedade em que ser quem se é ainda é uma luta.

Fica faltando, portanto, dizer: O que fazemos contra a violência? Onde pode a população LGBTIQ+ se sentir em casa?

Neste texto a palavra “casa” foi retratada como espaços LGBTIQ+ e como lar.

O confinamento pode aumentar a violência doméstica e de género. Deixamos algumas linhas de apoio.

– Linha de emergência: 112

– Linha Nacional de Emergência Social: 144 (24h/dia)

– Serviço de informação a vítimas de violência doméstica (CIG – chamada gratuita 24h/dia): 800 202 148)

– Linha da Segurança Social: 300 502 502

– Linha SOS Criança: 116 111

– Violência família ou no namoro Casa Arco-Iris/Gis (Associação Plano i): 966 090 117

– Violência família ou no namoro (Casa Qui):  960 081 111

– Linha LGBT ILGA Portugal: 218 873 922 // 969 239 229

– Serviço de Apoio Psicológico ILGA Portugal: sap@ilga-portugal.pt

– Serviço de Apoio Jurídico ILGA Portugal: juridico@ilga-portugal.pt

– Serviço de Integração Social ILGA Portugal: sis@ilga-portugal.pt

– Serviço de Apoio à Vítima ILGA Portugal: sav@ilga-portugal.pt

Somos Blergh

18 de Março de 2020

Mostrar o poder que um punhado de batatas tem quando se junta para fazer barulho e para trabalhar com uma visão em comum em mente. Porque não é preciso complicações, burocracias, hierarquias, rios de dinheiro, stresses – ou sequer grande seriedade! – para fazer as coisas acontecer.”

Esta é a missão do Somos Blergh um grupo de pessoas que se encheram de coragem e foram à luta. Autointitulam-se de batatas e marcham pelo país fora gritando por direitos iguais, o resto deixamos para que a Mafalda nos conte. Conhecemos a Mafalda Gomes, uma das fundadoras do Somos Blergh em 2018 e desde então que temos realizado algumas parcerias com estas batatas do Norte.

Creio que a principal curiosidade de todas as pessoas que ouvem falar de vocês seja de onde provém o nome do grupo, pois Somos Blergh é um nome fora do comum. E porquê as Batatas?

Mafalda:. É sempre um momento divertido quando me fazem essa pergunta, especialmente porque quando conto essa história as pessoas começam-se logo a rir com as respostas. Tudo começou quando quatro pessoas (pode-se dizer as quatro pessoas fundadoras do Blergh) estavam a ter uma conversa sobre bissexualidade e pansexualidade. Conceitos, diferenças, etc, Estávamos num bar, copos de cerveja na frente até que uma de nós diz: “Eu sou o que eu quiser! Eu sou Blergh!” A conversa continuou e decidimos fazer um pequeno troll aos nossos amigos nas redes sociais e à pala dessa conversa mudar o nosso género no Facebook para Blergh. Penso que ainda hoje tenho lá isso e já passaram dois anos. E foi devido a essa conversa e essa brincadeira que surgiu o grupo e o nome, mas irei dar mais detalhes mais para a frente nesta entrevista.

Quanto às batatas e ao porquê de batatas em todo o lado… outra história engraçada, suponho. Tudo aconteceu no dia em que decidimos, já enquanto Blergh, ir ao nosso primeiro evento, que só por acaso era a Marcha do Orgulho LGBT no Porto. Estávamos  em bloco, ainda éramos bastantes e eu tinha um megafone na mão. Aquele megafone em particular tinha uma série de músicas pré-gravadas já incluídas, que se não me engano eram cânticos de futebol. Enquanto marchávamos eu ia pondo as músicas a passar mas honestamente não se percebia nada da letra e do que estava a ser cantado nas gravações. A única coisa que percebemos foi que numa dessas músicas parecia mesmo que estavam a dizer “Viva a batata!”. Não era isso, claramente, mas nós decidimos que era isso que íamos começar a gritar o resto da marcha e foi precisamente isso que fizemos! A brincadeira colou e desde esse momento em diante adotamos as batatas como nossa imagem de marca. Passaram dois anos e o conceito das batatas continua forte!

Como surgiu a ideia de formar o grupo? Podes contar-nos um pouco sobre como é constituído?

Mafalda: Como se pode ver pela minha resposta anterior, o grupo e muitas das coisas que fazem o Blergh primar pela diferença vieram de brincadeiras. Foi o caso do nome, de adotarmos batatas como imagem de marca, entre outras coisas. O Blergh surgiu desses momentos divertidos, aliado a uma necessidade que as pessoas tinham de fazer coisas no Porto. Toda a gente queria fazer algum tipo de ativismo mas ninguém estava com muita paciência para burocracias chatas. Existia uma aura muito forte de querer fazer trabalho enquanto nos divertíamos e foi assim mesmo que começamos. Começamos por ir às marchas fazer barulho e dois anos depois ainda somos conhecidos como o coletivo das batatas que já tem bastante trabalho feito.

Atualmente somos perto de 15 pessoas naquilo a que chamamos o núcleo duro da batata e que estão responsáveis por tomar em conjunto as decisões dentro do coletivo. Para além disso e porque entendemos que trabalhar num coletivo requer tempo e dedicação, temos também uma mailing list de batatas voluntárias caso as pessoas prefiram ser chamadas pontualmente para aparecer e ajudar em eventos ao invés de estarem envolvidas em decisões mais complicadas e que possam consumir mais desse tempo que por vezes podem não ter para disponibilizar ao grupo.  Acho que no fundo, tentamos que haja espaço para tudo, para quem tem mais tempo e quem não tem e a mailing list de voluntários também tem vindo a crescer por causa disso.

O texto de apresentação do Somos Blergh refere que pretendem “fazer as coisas acontecer”. Conta-nos um pouco mais sobre as vossas actividades e objectivos?

Mafalda:  Apesar de todas as brincadeiras que deram origem ao grupo, quando decidimos fazer isso mesmo e avançar como grupo também entendemos que tínhamos vontade de fazer coisas acontecer. E por fazer coisas acontecer entenda-se, queríamos acordar ainda mais o Porto (e porque não o país!) e trazer de volta atividades e ações que começavam a ser cada vez mais escassas.  Vivemos cada vez mais numa era em que tudo está a passar para o digital, incluindo o ativismo e nós queríamos promover interações entre as pessoas, quebrar isolamento e proporcionar redes de apoio e segurança a quem precisasse. Enquanto grupo olhamos muito para a vertente humana da questão e por isso é que parte das nossas atividades consistem em rodas de conversa, organização de convívios, dinamização de marchas, entre outras coisas. Temos outras atividades realizadas mas no fundo todas partilham do nosso objetivo que é sempre chegar a pessoas de alguma forma. É isto que queremos. Atirar sementes para onde conseguirmos e cultivar terrenos com o poder da batata!

Sabemos que têm especial preocupação com as questões relacionadas com a saúde mental na população LGBTI+. Porque decidiram abordar essa questão?

Mafalda: Acho que a nossa maior preocupação com as questões de saúde mental se deve ao facto de sentirmos que elas ainda não obtiveram a devida atenção. É uma tema do qual finalmente se começa a falar mais, mas ainda não se fala o suficiente. As pessoas que se debatem com a sua própria saúde mental são altamente estigmatizadas e é preciso não só desmistificar estas questões como providenciar uma rede de apoio segura, não só em termos médico-profissionais mas também dentro da nossa própria comunidade e na sociedade em geral.

Observando as vossas redes sociais podemos perceber que realizam conversas com diversas temáticas na zona do Porto. Como é que estas conversas têm sido recebidas?

Mafalda: As conversas foram dos nossos primeiros projetos e é igualmente o mais antigo. Desde o dia um que sentimos que as pessoas ainda sentem uma enorme necessidade em falar. Hoje em dia com a Internet e a ascensão das redes sociais, entendemos que é necessário continuar a criar espaços onde as pessoas possam conversar cara a cara sobre os assuntos, debater opiniões e criar laços e pontes e entre elas. Diria que por todos estes motivos, as nossas conversas andam a ser bem recebidas desde o início.

Como vêm o activismo LGBTI+ em Portugal?

Mafalda: Eu aqui falarei mais em termos pessoais do que em termos de coletivo porque como grupo acho que todos temos pensamentos semelhantes mas também distintos sobre esta questão. Pessoalmente falando, gosto de ver um ativismo ativo e feroz em  Portugal. Sinto que é atento e que na maioria das vezes consegue dar resposta ao que é necessário. Estou no ativismo desde os 18 anos e as diferenças desde essa altura até agora são abismais. Não obstante, gostaria de ver um ativismo mais unido. Muitas vezes o que se observa são muitas frentes de ataque e pouca colaboração entre elas. Não sei se isto se deve ao facto de ser difícil conciliar tanta coisa ou se é apenas uma questão que necessita de reestruturação e de um debate mais profundo. Com a ascensão da extrema direita em Portugal, já vai sendo altura de pensarmos em formas de trabalharmos todos mais como uma equipa gigante e não tanto como uma série de equipas em separado.

Quais são os vossos planos para este ano?

Mafalda: Somos um coletivo que gosta de prometer o que cumpre. Apesar de termos sempre mil e uma ideias novas e coisas que gostássemos de fazer, a verdade é que é muito difícil concretizar todas essas vontades em trabalho voluntário devido a muitos de nós terem a maior parte da sua agenda cheia com a sua vida profissional ou académica. Os nossos planos para este ano, consistem em mantermos a nossa consistência, os projetos já existentes, a nossa participação nas marchas e termos uma palavra ativa na voz LGBTI+ em Portugal. O resto, faremos o que pudermos e tentaremos dar o nosso melhor para continuar a evoluir.

O silêncio como o terceiro na relação de casal

Iara Lugatte

10 de Março de 2020

O artigo deste mês diz respeito a uma história de casal homoafetivo, amor, sexo, silêncio e a terapia de casal.

Numa leitura desatenta sobre as dificuldades relacionais, não se questiona que essas mesmas dificuldades estão presentes no dia a dia dos casais homossexuais, e que estas não são “privilégios” dos casais heterossexuais. Quando se fala de amor, nada pode ser diferente, seja o casal homoafetivo ou heteroafetivo.

Como diz o poeta Drummond:

Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?

Amar e esquecer e mal amar.

Amar, desamar e amar?

Sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Esta é uma pequena história de amor e desamor entre dois homens homossexuais. Quando se conheceram tudo era perfeito, ele era gentil, delicado, amoroso, compreensivo, aventureiro, bem humorado. A vida sexual era prazerosa, tranquila, frequente, sem os arroubos da juventude, mas de muita qualidade. Viajavam todas as férias longas, e os fins de semana sempre tiveram um ‘sabor’ diferente com gosto de quero mais, e muita aventura.

O tempo foi passando, e a rotina de casal foi se alterando. O que era feito por prazer deu lugar ao desconforto. O parceiro foi sentindo o distanciamento entre os dois que passou a ocupar um espaço cada vez maior. O sexo foi o primeiro sinal de alarme a tocar, já não sentiam o mesmo desejo e interesse um pelo outro. Assim, entre eles surgiu um terceiro que passou a fazer parte do dia-a-dia do casal: o silêncio. Como ambos não estavam satisfeitos com a situação, outros elementos passaram a fazer parte da relação: a irritabilidade, a impaciência, a intolerância, e o desconforto entre eles. Sem saberem como lidar com o desencanto, o sexo, elemento de elevado prazer, foi parar num canto qualquer da vida do casal que, sequer sabiam aonde ficava e, nem um, nem outro se preocupou em procurar.

O que será que está acontecendo connosco? perguntavam-se, mergulhados nos seus silêncios. As discussões passaram a tomar o lugar da conversa bem-humorada, momento reservado, até então, à comunicação diária. A insatisfação e as cobranças contaminaram toda a rotina do casal, e o álcool passou a ser um companheiro na infelicidade do dia a dia deles.

Cansado daquela rotina, um dos parceiros pensou em buscar ajuda na terapia de casal, mas qual não foi sua surpresa, o parceiro não aceitou, e a desculpa foi “isso passa, é só uma crise, vamos sair para jantar naquele restaurante que você gosta”. E assim foi, saíam para jantar, e mais uma vez, o silêncio era companheiro e cúmplice deles durante a noite. Mas o silêncio, aquele silêncio cheio de ruídos, ensurdecedor…este, não é feito da falta de palavras, mas sim, do excesso de palavras não ditas, aquelas que povoam as mentes e os corações dos amantes desiludidos.

E, quando um dos parceiros opta pela postura defensiva, e nega a existência dos problemas na relação, estes agudizam-se e os afastam ainda mais da solução, seja ela qual for. Afinal, qual seria o grau de comprometimento deles com o amor, o desejo, a alegria e o prazer outrora vividos para poderem tirar a relação do atoleiro silencioso onde afundou-se?

Terapia de casal? Sim, mas se o outro não aceita, qual seria a alternativa? E como é comum acontecer, um deles tomou a decisão de procurar ajuda na terapia de casal. Assim, ele estaria presente de carne, ossos e coração, mas o parceiro também, presente na ausência. Ele levou o companheiro para a terapia através do seu discurso, dos seus relatos, das suas queixas, da sua insatisfação, da sua raiva, das suas vivências e da sua impotência diante dos escombros do amor e do desejo que um dia existiram.

E, foi lá, no espaço terapêutico que ele conseguiu descortinar o que de fato estava acontecendo: o desejo e o prazer acabaram, completamente, e a sexualidade fora sepultada em algum lugar no passado. A admiração e a identificação ficaram para trás, e o casal que um dia foram terminara, e o parceiro não sabia, negou-se a saber. Mas, através da terapia, ele conseguiu identificar os medos e as fantasias que sustentavam a falida relação, e descobriu que a música do Chico “O que será que será?” fora escrita para eles “o que não tem conserto, nem nunca terá”.

Incompetência de um ou de outro, não importa, mas a verdade é que não havia mais tempo para ser infeliz. Aceitar que uma relação já carcomida pelo silêncio – tal como os cupins destroem, silenciosamente, a madeira mais nobre – deve acabar, é uma sabedoria. Foi o que ele descobriu, e que a ausência de interesse sexual ajudou a esclarecer, pois foi o primeiro sinal de falência da relação. Portanto, a terapia de casal permite que se acabe com o que já não existe de maneira clara e sem culpas, mas também, que se recupere os encantos adormecidos pela rotina e pela dureza dos afetos.

Entretanto, a terapia de casal não resolve o desinvestimento afetivo, os desencontros amorosos, e o desinteresse sexual quando um dos parceiros não quer. E como dizia o psicoterapeuta Roberto Freire “sem tesão não há solução”, é a vida sexual dos amantes que dá o tom nas relações de afeto.

Esse tesão não habita dicionários, entretanto, é o que anima e encanta os poetas tropicais (…) Tesão sem passado, apenas contemporâneo e vertical, ele é produto semântico e romântico dos que sentem desejo pelo desejo, alegria pela alegria e beleza pela beleza. Mas pode, linda tesão de quem sente, desejo pela alegria, beleza pelo desejo e alegria pela beleza” (Roberto Freire, 1990)

E, finalmente, o meu desejo é que os amantes desejem se desejar, e que desejem o desejo.

Gisberta

João Paulo

(PortugalGay.pt)

21 de Fevereiro de 2020

Olá, boa noite!

Vou tentar contar-vos quem fui até há bem pouco tempo, mais concretamente, até Fevereiro deste ano. (2006)

Desculpe, não ouvi!?

Como é que me chamo?

Mais à frente eu digo, agora o que interessa é que o meu nome é “igual” ao de tantas outras transexuais e prostitutas, que todas as noites vão calcorreando os passeios e beiras de estrada, vendendo serviços sexuais, fazendo os outros felizes, por breves instantes é claro, enquanto ganhamos a vida.

O meu nome é igual ao de tantas outras que partiram deste mundo, e de quem ninguém quis saber.

Bom, mas, passemos à frente! Quem fui?

Fui uma mulher linda, uma mulher que veio do Brasil para Portugal, para a Europa. Aqui fui mulher, fui gente, fui estrela, à pois é, fiz espectáculos que ainda hoje lembro, e sou lembrada pelas amizades que fiz nesse tempo.

Sempre amei intensamente, mas nunca fui amada. Restou-me os meus Yorkshire, a Carolina, linda, foi atropelada por um carro acelerado, e o Leonardo, amigo do meu coração e de uma vida, a velhice levou-o. A natureza levou-o e com ele levou a minha vontade de viver, o meu equilíbrio, o meu companheiro de sempre partiu, e com ele partiu tudo que me restava.

Sabem todos nós, seres humanos, somos mais ou menos permeáveis a este ou aquele químico, e eu descobri que o meu corpo nunca devia ter experimentado essa droga.

O problema foi a primeira dose!

A casa vazia, sem os meus amiguinhos de pelo, o coração negro, vazio, envolvido por um silêncio ensurdecedor levou-me nesse mundo obscuro do vicio.

Perdi-me, e não encontrei o caminho de volta. Ingressei no caminho para a morte.

Perdi-me e perdi o respeito por mim e pela vida, fugi das minhas amigas, afundei-me, sozinha, como na verdade sempre estive, embora rodeada de amigas, o Amor de alguém que connosco partilha o bom e o mau, cada momento, que connosco constrói uma vida a dois, esse Amor, esse, nunca tive.

No início deste ano eu estava muito mal. Debilitada física e psicologicamente, a droga, a sida, e todas as outras doenças oportunistas que tal como as pessoas, nos calcam quando estamos indefesas, deixaram-me num estado muito débil.

Ganhava a vida, ou que dela restava, para comer e para o vício, prostituindo-me.

Vivi o fim da minha vida como uma sem-abrigo, num prédio abandonado, e por acabar. Várias vezes vinham uns putos, quase todos os dias, que me chamavam nomes, sabiam que já tinha sido homem. Cheguei a ir à comunhão de um deles, eu conhecia-os.

Mas … a Fevereiro deste ano, eles vieram mas, traziam um olhar diferente.

Chamaram-me nomes como de costume, mas foram-se aproximando cada vez mais, atiraram uma pedra, e depois outra, e outra, outra, e mais outra, … já bem perto de mim e antes que pudesse fazer algo, e como poderia de tão fraca que estava, pontapearam-me, deram-me socos, cai e amarraram-me os pés e as mãos, amordaçaram-me, e continuaram com os socos e os pontapés, … deixaram-me ali no chão e foram-se.

Que noite tão fria, e as dores que sentia, como foram eles capazes de fazer aquilo?

No dia seguinte voltaram, e ali estava eu imóvel no mesmo sítio onde me tinham deixado, e recomeçaram tudo de novo, pontapearam-me, socaram-me, queimaram-me com cigarros, … estava tão fraca que nem conseguia gritar, os meus gritos eram interiores, silenciosos, mas intensos. Mas um grito fez eco, um grito de agonia, … eles penetram-me o ânus com um pau, infringindo no meu débil corpo uma tal dor, dilacerante.

Nesses instantes os meus gritos silenciosos, intensos, agonizantes, transformaram-se numa súplica a Deus Pai para, que me levasse naquele instante, não suportava mais tanta dor, pensava eu!

A tortura física que eles me faziam sentir, deu lugar à tortura psicológica de saber a mulher linda e energética que fui, estava agora ali deitada naquele chão imundo amarrada e amordaçada, a ser espancada, dilacerada, por crianças com menos de 16 anos, e que eu até os conhecia, ali estava eu sem poder fazer nada.

Foram-se, mais uma vez deixaram-me ali estendida, moribunda, como um cão morto na berma da estrada.

Voltaram pela terceira vez no dia seguinte, e ali estava eu à “espera” deles, como se dali pudesse sair!? Doente com todos males que já tinha antes, agora com três dias sem comer ou beber, espancada, violentada, dilacerada, três dias depois do início do fim.

Olharam-me assustados e na expectativa de esconder o que tinham feito pensaram em queimar-me, mas isso dava muito nas vistas, disse o mais velho, o fumo era o problema, alertou, então decidiram atirar-me para dentro de um fosso de água parada, pensaram que estava morta, e embora não faltasse muito para isso, atiraram-me ainda viva para a água.

Amarrada como poderia eu tentar pela minha vida, então terminei o meu caminho para a morte afogando-me. Seja, tive a morte das mortes, depois de três dias sem comer ou beber a ser espancada, depois de ser dilacerada, afogaram-me, …diz o povo que não tem morte mais horrenda que morrer afogada ou queimada, pois eu superei este dizer, tive a morte mais agonizantes e desesperadas que qualquer ser vivo pode ter.

Sem forças ou condições para poder me agarrar a algo ou tentar nadar ali fiquei, ali morri.

Meu Deus como eu sofri!

Mas sabem, a minha morte não foi em vão!

Neste país que me acolheu e naqueles por onde passei, e outros, as minhas amizades não deixaram que eu fosse mais um nome numa já longa lista. Reuniram-se em vigílias, enviaram protestos, reclamaram justiça, fez-se músicas em meu nome, a minha morte deu luz às transexuais que ninguém falava, que ninguém via, mas que muitos usavam.

A minha morte tem hoje uma força única, na boca de cada um que me lembra, nas acções de cada grupo.

Hoje sou lembrada, e comigo ou por mim todas as Gisbertas do mundo são mais visíveis.

Ah! Sim, o meu nome … GISBERTA.

Que saudades tenho de vós meus amigos!

Dyva D’Arc

15 de Fevereiro de 2020

Dyva D’Arc é o nome pelo qual André Teles se apresenta na sua performance transformista. Este jovem de Viseu assume a sua personagem Drag, envergando os seus vestidos e magicamente equilibra-se em cima de sapatos de salto mesmo em pedras de calçada.

Como surgiu a vontade de fazer transformismo? E como foi o processo até te estreares na primeira vez como Dyva?

André: Tudo começou quando havia um bar GLS em Viseu, em Março de 2015, fiquei maravilhado com as lantejoulas, as plumas e todo o conjunto que constitui uma personagem. Daí até actuar posso dizer que foi um caminho bem longo, cheio de entraves e azares, mas com esforço e dedicação tudo se consegue! Foi em Junho de 2016, na bela cidade de Leiria, que nasceu Dyva D’Arc no “Why Not? Leiria”, que já fechou.

Como foi a reacção da tua família quando lhes contaste da existência da Dyva?

André: Ter pais separados nem sempre é mau! Este caso foi um deles! Quando contei à minha mãe ela reagiu muito bem, melhor do que eu esperava. Lembro-me que disse “Ficas melhor assim”, já o meu pai apenas se resignou. O resto da família… É daquelas coisas que todas as famílias têm… preconceito!

De onde provém o nome da tua personagem Drag?

André: Diva- foi assim que um vizinho, também ele da comunidade LGBTI, me “batizou”. Do Arco- por ser a referência do local onde vivia na altura. É claro, que depois quando subi aos palcos fiquei como Dyva D’Arc.

Sabemos que durante algum tempo a Dyva esteve ausente. Podes nos explicar um pouco o porquê dessa decisão?

André: É verdade! Por vezes, abdicamos do que nos faz bem para uma satisfação maior, mas pior é quando uma sente falta da outra… E assim foi… A Dyva esteve ausente cerca de 1 ano. Eu decidi fazer uma experiência vocacional, a minha fé me chamava a seguir Cristo de maneira diferente e sendo como sou…

De que experiência vocacional falas? E de que forma isso teve impacto na tua vida?

André: Sempre, em toda a minha vida quis ser padre, mas sem abdicar de quem eu sou! Então resolvi fazer uma experiência vocacional para discernir o que o Senhor queria de mim, creio que me chama a fazer parte da Igreja e da Comunidade LGBTI+, pois disse: “amai-vos uns aos outros como Eu vos amei…” (Jo 15,12-17)

Foi a experiência mais intensa na minha vida, lembro-me como se fosse hoje, custou-me amargamente o primeiro dia que por lá vivi, era pois 23 de junho de 2018, dia de celebração da para a minha Dyva, começava assim o meu discernimento para abdicar de pequenas grandes coisas na minha vida. Foi importante o tempo que lá estive, cresci!

Como é ser um jovem católico homossexual e com personagem Drag em Viseu?

André: Não é fácil! As pessoas que frequentam a Igreja são pessoas com mente fechada! Nós também não vamos á Igreja para ver as pessoas ou os padres, mas sim contemplar o mistério de Cristo.

Sabemos que possuis uma página de facebook denominada Em Comunidade e que tens inclusive um jornal. Podes falar um pouco sobre este projecto?

André: Claro que sim! O Jornal Em Comunidade, foi fundado por mim em março de 2019.

Inicialmente era apenas um jornal católico, mas depois com a minha visão clara, de uma Igreja manchada pelos seus frequentadores decidi tal como eu, colocar o jornal católico LGBTI+, porque embora a sua orientação sexual, ou a sua identidade de género a casa de Deus é de todxs e Deus ama-nos de maneira igual e ninguém deve ser excluído dessa casa! É importante falar destes assuntos, para os mais conservadores católicos!

Atualmente é escrito por mim e por uma amiga, embora que as portas para artigos estarão sempre abertas para todxs os que quiserem fazer parte.  Fazemos uma publicação mensal onde partilhamos um pouco da vivência cristã e LGBTI+.

Porque achas que a igreja católica ainda não consegue aceitar a orientação sexual de cada pessoa como algo que faz parte de cada ser e que em nada influência a crença de cada um?

André: O Papa Francisco, em 2018 numa entrevista a um homem homossexual disse: “Deus fez-te assim”. Este é considerado o comentário mais liberal sobre a homossexualidade vindo de um Chefe da Igreja Católica. Hoje, passado um ano essa frase ainda causa algum distúrbio a católicos conservadores e mesmo padres. Ele quer que a Igreja cresça, mas as pessoas são muito pequenas para uma sociedade tão grande.

No meu ponto de vista como católico e LGBTI+, a “Igreja” quer continuar a ser o que é, mas nunca se pode esquecer de uma frase de Cristo, que nos diz São João, na passagem 15,12-17: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos Amei”.

O que disse Foucault sobre a sexualidade (parte III)

Iara Lugatte

06 de Fevereiro de 2020

Judith Butler, não por acaso inspirando-se em Michel Foucault, retorna à discussão sobre os hermafroditas justamente para desconstruir o sistema corpo-sexo-gênero em seu caráter discricionário e produtor de efeitos de subordinação e desvalorização de práticas e de sujeitos. Suas importantes análises sobre indivíduos hermafroditas cirurgicamente ‘corrigidos’ ao nascer demonstram a persistência de uma importante continuidade com certas práticas médicas e jurídicas do passado. Por certo, esses indivíduos contemporâneos não são mais definidos como monstros a serem eliminados, nem tampouco são classificados como criminosos, todavia, ainda são indivíduos que, perante o olhar médico e jurídico, necessitam de uma importante ‘correção’ e adequação, por meio de intervenções cirúrgicas realizadas logo ao nascer (BUTLER, 2001, p. 19), a fim de se adequarem à norma que estabelece o sexo em sua verdade.

Em suma, o saber médico ainda determina qual é o sexo verdadeiro de um indivíduo e a cirurgia é então realizada para a retirada de qualquer vestígio do sexo invasor, o falso sexo. Ainda para nós, portanto, continua sendo impossível suportar a dubiedade anatômica, na medida em que isso também pode significar uma dubiedade do desejo. Afinal, somente é possível suportar a existência de um corpo cujo sexo corresponda de maneira fidedigna ao desejo que, por sua vez, é entendido como compatível à verdade daquele sexo. Eis, portanto, constituída a regra de ouro da heterossexualidade normativa, como nos ensinou Butler.

Butler argumenta que os substantivos “homem” e “mulher”, bem como os atributos e predicados de gênero que lhes são correspondentes historicamente, somente assumem sua rígida estabilidade substancial quando submetidos a parâmetros normativos organizados pelo binarismo de gênero e pela a heterossexualidade como regra compulsória. Para a autora, sem o pressuposto fundamental da heterossexualidade como regra de base não haveria porque reiterar continuamente a diferença binária entre homem e mulher como o critério de determinação da inteligibilidade e da estabilidade dos sexos e dos gêneros. O que está em jogo aqui é o estabelecimento de uma cadeia causal entre sexo-gênero-desejo, na qual os corpos e sexos opostos devem se atrair e os iguais devem se afastar.

Portanto, as normas sociais que estabelecem e afirmam a continuidade necessária entre sexo, gênero, prática sexual e desejo são as mesmas que produzem e proíbem as quebras nessa cadeia de nexos sistemáticos. A noção do “verdadeiro sexo”, criticada com justeza por Foucault em sua discussão do caso de Herculine Barbin (FOUCAULT 1983), depende, portanto, de um quadro normativo prévio que estabelece a necessária continuidade estável e causal entre sexo biológico, gênero, práticas sexuais e desejos. O mesmo argumento também pode ser formulado a partir da ideia de que sem o constante reforço social do imperativo heterossexual e reprodutivo, não faria sentido produzir discursivamente o corpo como matéria organizada e classificada a partir de noções relativas ao ‘sexo’ e ao gênero.

Se o ‘sexo’ é uma ficção, um ideal regulador, este ideal está previamente pautado pelo imperativo da heterossexualidade reprodutiva, o qual exige a diferenciação sexual, o binarismo de gênero e a atração dos gêneros opostos.

João Cartaxo, LGBTI Leiria

15 de Janeiro de 2020

“Combater a discriminação, eliminar fobias, assegurar direitos e celebrar a diversidade do amor!”

Assim se apresenta o grupo LGBTI Leiria, formado recentemente mas já com data marcada para a 1ª Marcha LGBTI+ de Leiria a decorrer em 2020. Conhecemos o João ainda antes da formação do grupo através das redes sociais e temos um carinho especial por este rapaz “mouro”que vive em Leiria e é um dos fundadores do grupo. 

Como surgiu esta ideia de formar um grupo de defesa dos direitos LGBTI em Leiria?

João: Há cerca de dois anos surgiu uma vontade de procurar fazer mais e melhor, de uma maior preocupação para com os outr@s e da necessidade de lutar pelos direitos de tod@s! Tornei-me membro da Amnistia Internacional Portugal e pertenço ao grupo de Leiria. Nessa altura surgiu a possibilidade de trabalhar na temática dos direitos humanos e, com o decorrer do tempo, também comecei a desejar poder organizar a primeira Marcha LGBTI de Leiria. Assim, em 2018, reuni alguns interessados e comecei a trabalhar nesse sentido.

Creio que formaram o grupo há cerca de oito meses certo? Quem constitui o grupo neste momento?

João: O grupo nasceu no início de 2019. Trabalhámos com algumas associações da região de Leiria e em maio tornámo-nos públicos nas redes sociais. Nesse momento tivemos conhecimento que tinha surgido um grupo LGBTI de estudantes na universidade. Foi então que decidimos juntar tod@s e hoje somos um conjunto de pessoas coeso com um núcleo de cerca de 10 pessoas e vários apoiantes que nos ajudam e contribuem para o Movimento crescer.

A questão LGBTI+ ainda é considerada um assunto um pouco tabú neste país. Como foram recebidos pela população de Leiria?

João: Posso afirmar que, na generalidade, fomos bem recebidos e as pessoas ficaram contentes por saberem da criação de um grupo LGBTI na região. Sei que ainda é cedo para ter uma opinião mais concreta e que é possível receber outras reações diferentes das que esperamos. Com a exposição vamos conseguir ver o quão LGBTI a cidade de Leiria é, o que não quer dizer que seja tudo bom, pelo contrário. Através das redes sociais, a notícia do Movimento e do anúncio da Marcha foi partilhada em vários sites e páginas e vimos surgir alguns comentários negativos e até mesmo depreciativos, que desvalorizam, ridicularizam, e gozam com a comunidade LGBTI. Esse tipo de reação é a prova de que ainda existe muito trabalho para fazer. Vivemos ainda numa sociedade heteronormativa em que o senso de inclusão social deve ser promovido e trabalhado.

Sei que têm felizmente tido o apoio da vossa autarquia, algo que é muito positivo. De que forma tem chegado esse apoio?

João: Foi uma alegria enorme ter a confirmação do apoio da Câmara Municipal de Leiria. Falámos com alguns vereadores que se mostraram solidários com a criação do nosso movimento. Já temos a Câmara Municipal a trabalhar connosco e a apoiar a primeira Marcha LGBTI + de Leiria.

Desde o início da vossa formação que já realizaram dois eventos. Podes nos falar deles um pouco?

João: Começámos com o anúncio da primeira Marcha LGBTI + de Leiria na primeira festa Oh Deer, I’m Queer! em novembro, numa discoteca no coração da cidade, a qual nos acolheu logo após o nosso convite. Foi uma festa calorosa e uma alegria ter tido a comunidade LGBTI no centro da cidade.

De seguida, em dezembro, tivemos um evento sobre feminismo no Atlas, uma sessão introdutória sobre, O que é o Feminismo?, que consistiu numa conversa informal com a Rebeca Moore, da Rede 8 de Março, e com a Mari Fonseca do nosso Movimento.

6 – O ano de 2019 já terminou como se sentem relativamente ao trabalho que têm realizado?

João: Sabemos que temos ainda muito trabalho por fazer – o ano de 2019 soube a pouco. Foi um bom início, mas estamos numa cidade em que o associativismo LGBTI não existia e só vemos boas razões para continuar a trabalhar por tod@s.

Podem dizer o que já têm planeado para 2020 ou é segredo? A Marcha sabemos que já tem data marcada para Setembro, mas até lá o que podem esperar as pessoas que vos seguem?

João: Podemos desvendar um pouco sim! A nossa primeira Marcha LGBTI+ de Leiria será a 26 de setembro, mas até lá teremos tertúlias, sessões de informação, sessões de cinema, debates e mais festas. Estamos a ter um impacto positivo em Leiria e é esse o nosso foco – trabalhar para a igualdade e visibilidade da comunidade LGBTI.

E para terminar só uma curiosidade, o vosso logótipo tem um duplo sentido, podes explicar?

João: Claro que sim, queríamos transparecer a base da nossa origem e motivação. Falámos com a nossa designer Joana Santos, à qual demos total liberdade criativa e o resultado foi um logotipo contemporâneo que junta num origami o amor e a liberdade – um pássaro e um coração, a nossa identidade, a liberdade do amor.

O que disse Foucault sobre a sexualidade (parte II)

Iara Lugatte

11 de Janeiro de 2020

O dispositivo da sexualidade ontem e hoje: sobre a constituição dos sujeitos da “anomalia sexual”

Foucault ressalta um importante artigo de 1879, escrito pelo médico alemão Westphal, no qual se descrevem as “sensações contrárias”, tomando-o como a data de nascimento do sujeito homossexual. Nesse artigo, a homossexualidade foi descrita como uma categoria psicológica, psiquiátrica e médica.

Para Foucault:

A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androginia inferior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie. (FOUCAULT, 1984, p. 43-44)

No curso de 1975 proferido no Collège de France, Os anormais (2001), Foucault trouxe à luz uma série de ‘casos’ de hermafroditas, mostrando-nos ser possível traçar sua análise genealógica a partir das distintas formas de abordagem desses indivíduos ao longo de quatro séculos. No século XVIII, após a identificação de que um mesmo indivíduo portava os dois sexos em um mesmo corpo, determinou-se que este indivíduo poderia escolher entre um dos dois sexos. O aspecto mais importante então era a proibição da sodomia, para a qual poderia haver uma condenação jurídica, levando mesmo à pena de morte do infrator. (FOUCAULT, 2001, p. 93)

Foucault analisou uma vasta literatura médico-jurídica sobre hermafroditas entre os séculos XVI e XIX, farta e rica no detalhamento quanto aos exames dos corpos e as penalidades aplicadas em cada momento dado. No transcurso daquele período histórico, o que o autor percebeu foi um deslocamento em relação à abordagem da questão, isto é, gradualmente o/a hermafrodita deixava de ser tomado/a como um monstro da natureza e passava a ser tomado/a como um caso médico, uma anormalidade anatômica e fisiológica e, sobretudo, um caso que não estaria fora da natureza, mas que se tornaria uma monstruosidade de caráter, o que, mais tarde, iria aproximá-lo da criminalidade. (FOUCAULT, 2001, p. 93) Assim, as condenações posteriores ao exame médico, já a partir do século XVIII, possuem o sentido de uma reintegração ao sexo verdadeiro. Há uma enorme preocupação com a vestimenta, que deveria ser condizente com o sexo determinado pelo saber médico e, sobretudo, que o casamento fosse realizado com um indivíduo do sexo oposto.

Aquilo que se observa nessa longa jornada histórica em torno dos/as hermafroditas diz muito sobre a configuração do dispositivo da sexualidade, o qual somente se estabeleceu por completo ao longo do século XIX. No interior do dispositivo da sexualidade não se pode tolerar qualquer dubiedade na determinação do sexo, de modo que se não houver perfeita correspondência entre o sexo e uma anatomia definida, então será necessária a produção de uma verdade médica que estabeleça a correta definição. Além disso, tornou-se fundamental a constituição de hábitos e vestimentas condizentes com a condição daquilo que passou a ser entendido como o sexo verdadeiro e, por fim, a determinação da união com o sexo oposto, única e exclusiva união matrimonial, também ela a única verdadeira. Dessa forma, por meio da análise dos casos de hermafroditismo, ao descrever o próprio funcionamento do dispositivo da sexualidade Michel Foucault deu o passo inicial na direção de se compreender como, por fim, também veio a se produzir o sistema corpo-sexo-gênero entre os séculos XVIII e XIX.

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